Meu "Crepúsculo dos Ídolos" (1888) está marcado no aforismo que
transcrevo a seguir. Ainda não li o livro todo, folheei-o
displicentemente há alguns meses e guardei esse aforismo pela ferocidade
da crítica que ele apresenta.
Penso ser inegável que hoje
assistimos à ruína de praticamente tudo aquilo que foi associado um dia à
esquerda do espectro político - os comunistas, o PT, os sindicatos, os
direitos trabalhistas... No caso do Brasil, especificamente, há uma
fragmentação a cada dia maior, tanto consequência como causa de uma
desmobilização, uma incapacidade de organização política, etc. De minha
parte, penso que aquele pessoal do Rio que mobiliza a categoria dos
garis a partir de uma leitura deleuziana é a única - senão a última... -
organização que mantém fôlego, para usar uma expressão famosa: que "é
um devir".
Eu já escrevi algo neste mesmo sentido - no caso,
sobre esse "feminismo de facebook", asqueroso, desprezível - o
"Feminismo Pára-Que-Tá-Feio!"
Aqui o Nietzsche toma o caso dos anarquistas - ele recorrentemente cita
os "camaradas anarquistas", desde o "Aurora" (1880) - mas o seu escopo
nos serve para analisar aquele fenômeno supracitado. É interessante que
ele, provavelmente, foi o primeiro pensador a colocar o cristianismo
próximo dos ideais socialistas (tendo como gradações do mesmo espírito
os "democratas", "socialistas" e "anarquistas") - contra a própria
"vontade consciente", contra os próprios discursos destes.
O
belo do pensamento de Nietzsche é que ele é inapreensível,
incontrolável, não se prende a esquemas sistemáticos... Há quem o chame
precursor do nazismo - a calúnia da qual ele mais se desgostaria,
deveras... ser associado à germanidade funtamentalista-cristã! Ele,
contudo, se coloca como "anti-socialista" convicto e toda a sua crítica
ao socialismo e seus pares - para mim, a do "espírito democrático" no
"Além do Bem e do Mal" é o mais assustador insight dele e, ainda assim e
por isso mesmo, genial - é um deleite! Esse aforismo é bem pontual, há
ainda muitos outros que observam outras questões...
"34.
Cristão e anarquista - Quando o anarquista [JB: ou a feminista, o
governista/petista, etc. - ou mesmo para o outro lado da ferradura:
fascista, golpista, etc.], como porta-voz dos estratos declinantes da sociedade, exige, com bela indignação, "direito", "justiça", "direitos
iguais", ele apenas está sob a pressão da sua incultura, que não pode
compreender por que sofre realmente - de que é pobre, de vida... Um
instinto causal é poderoso dentro dele: alguém deve ser culpado por ele
se encontrar mal... E a "bela indignação" mesma lhe faz bem, para todo
pobre-diabo é um prazer xingar - dá uma pequena embriaguez de poder. Já o
lamento, a queixa, pode dar à vida um encanto que a torne suportável:
há uma sutil dose de vingança em toda queixa, censuramos nosso estado
ruim, às vezes até nossa ruindade, àqueles que estão em outra condição,
como sendo uma injustiça, um privilégio ilícito. "Se eu sou canaille,
você também deve ser": com esta lógica se faz revolução. - Em caso
nenhum a queixa vale algo: ela se origina da fraqueza. Se atribuímos
nosso estado ruim a outros ou a nós mesmos - a primeira coisa faz o
socialista, a segunda o cristão, por exemplo - é algo que não faz
diferença. O que há em comum, digamos também o que há de indigno nisso, é
o fato de que alguém deve ser culpado por se sofrer - em suma, de que o
sofredor prescreve o mel da vingança para seu sofrimento. Os objetos
dessa necessidade de vingança, como uma necessidade de prazer, são
causas de ocasião: em toda parte o sofredor acha ocasiões para mitigar
sua pequena vingança - se for cristão, repito, encontra-as em si
mesmo... O cristão e o anarquista - os dois são decadénts. Mas, também
quando o cristão condena, denigre e enlameia o mundo, ele o faz pelo
mesmo instinto a partir do qual o trabalhador socialista condena,
denigre e enlameia a sociedade: mesmo o "Juízo Final" é ainda o doce
consolo da vingança - a revolução que o trabalhador socialista também
aguarda, apenas imaginada para mais adiante... E o próprio "além" - para
que um além, se não fosse um meio de denegrir o aquém?..."
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