sábado, 6 de janeiro de 2024

Ao Deus Janeiro

Se arrependimento matasse... Decerto mata e eu já morri muitas vezes na vida. Mas sempre renasci, ressuscitando meu orgulho e afirmando: "Tal e tal coisa foi importante para que eu (re)aprendesse tal lição ou desenvolvesse tal habilidade". O que não justifica o sofrimento, mas, certamente o redime.

Recentemente, tenho ouvido bastante "Carpe Diem", minha obra do 2º semestre de 2018 e me parece que cada verso ali cantado me relembra alguma lição de um passado já não tão recente: Aquela pacificação e sutileza do espírito que emerge meses após uma derrota humilhante e uma excruciante, gigantesca, violenta e incurável frustração. Eu mesmo canto nos meus ouvidos: "Escolho viver para conhecer/Os mistérios são a minha ambição" e "Se você não puder enxergar o lado bom que em tudo existe/Não haverá outra solução contra uma vida mais triste!" e "Todo lugar é um fim da linha/Quando um novo dia se avizinha" e "Cuidado com a música, ela poderá um dia fazê-lo chorar/Ao fazê-lo sentir ser impossível ignorar o que se impõe expressar" e "Se ontem eu era um tanto obscuro/Hoje eu sei, sou um homem perfeito/Há quem diga que eu seja impuro/Mas que calúnia! Sou puro despeito!" e assim, superado o pavor e o imenso desespero do contato tão íntimo, tão próximo, com a morte — real e simbólica—, consigo seguir caminhando no caminho escuro no qual "Só ouço meus passos/Mesmo dentre a gente eu sigo sozinho/Não só as paredes têm ouvidos/Como alguns ouvidos também têm paredes". É um caminho sombrio, pois, a única luz que o ilumina vem de mim mesmo e "A chama não é tão clara pra si mesma/Quanto para quem ela ilumina" (este último de “Flama”, do “Cave Musicam”, 1º semestre do mesmo ano).

Ah, já não gasto minha garganta gritando com os ouvidos bloqueados por paredes que não podem me ouvir. Já não gasto meu latim vulgar com quem é incapaz de sequer me compreender quanto mais — me amar! 

Aos poucos a vida vai retomando o seu caminho, um novo caminho. Já surgem de mim mesmo novas metas e um horizonte ainda mais amplo e distante do que o de antes. E, neste ano em que completo 20 anos de música e canções quero agradecer minha mãe por confiar na minha força de vontade e me presentear com um violão em 2004, e minha vó por me presentear em 2005 com uma gaita cromática de primeiríssima qualidade que retenho ainda hoje. Se tudo ao meu redor ruir, se mesmo aquilo que mais amo na vida morrer, não morrerei enquanto funcionar em mim a oficina de construir canções. 

Me desprendo de toda "identificação", de qualquer coação a ser aquilo que não sou — e recupero e exercito ainda mesmo certa malícia contra aquilo que "eu sou": Ora, que importa eu mesmo? Ou — aquilo que há de mais ridículo e risível — as minhas vontades? Eu sou um belo burro de carga e a vida ainda é muito longa! Ainda hoje dou um passo adiante rumo a uma vida mais livre, mais corajosa e mais soberana. Ó, Deus Janeiro, senhor do recomeço, que eu seja quem diz sempre "sim!" e que minha única negação seja virar o rosto!

domingo, 31 de dezembro de 2023

"Sehnsucht & Shoganai ou Anseio & Superação" (2023)

Contracapa do álbum, inspirada na arte gráfica das edições de Byung-Chul Han pela editora Vozes

 

Diria, como metáfora, que uma vez que nos afastamos da influência de outras gravidades, seguimos adiante no universo movidos pela nossa força propulsora inicial — já não podemos parar, já não olhamos para trás. A esta altura da vida nos é dado apenas seguir adiante. Este álbum, esta coleção de canções que são a expressão da minha experiência mais íntima na existência; a minha suma, cujas opiniões e sentenças são mais minhas quanto mais universais se apresentem, é este astro solitário que se afasta, na amplidão do universo, criando sempre mais espaço entre si e os demais. A grande explosão que originou esse movimento ocorreu há quase 20 anos... “Sociedade Paliativa”, baseada no gozo triste com a leitura do transdesesperançoso filósofo coreano-alemão Byung-Chul Han, é a canção que, neste álbum, se filia à tradição inaugurada em “Sociedade do Consumo” (“Concreto Armado”, 2005), dos meus remotos esforços críticos em forma poética. No todo, reserva mais semelhanças com um irmão mais velho, “Καιρός (2016): os mesmos gosto de lágrimas e cheiro de sangue; o mesmo desespero e ranço do espírito de asas quebradas, rastejante como um verme que ainda não se recriou no casulo; a mesma embriaguez e entorpecimento de uma alma destroçada, entregue e prostrada à beira do “caminho de dor infinita, de decadente ganho, daquele que está cansado de chorar” (“The path of endless pain, of decaying gain, of whom is tired to cry”, assim um eu-lírico envenenado e cansado de seu próprio veneno cantava então em “Mitleiden In Der Mitternacht”). “Sehnsucht” como se chama a nostalgia por algo não vivido, o anseio inominável por um mundo que existe apenas enquanto estado do espírito e que, assim, se realiza, a força motriz, a eterna chama, o “longo caminho” do desejo. Ah, o jumento só diz “sim” se ele fala alemão! [“ia!” é a onomatopeia do “zurro” do jumento na língua materna da filosofia moderna]. Este belo burro de carga aprendeu a ler a dor e a alegria da vida em mais de uma língua e em cotejo com várias traduções; a escrever em vernáculo o fluxo de sons & sinais de seu espírito, cantado em canções. Este camelo sabe que o deserto cresce, que o conhecimento da vida amplia seus limites e as noites e os pequenos prazeres encontrados na aridez já não soam tão agradáveis quanto antes. Para acolher novamente a mais rara beleza das asas das borboletas e da ventura de todos os bichos que se criam soltos, será preciso recuperar a inocência da vontade, justifica-la e redimi-la... “Shoganai” não meramente como uma aceitação passiva da realidade, mas, como preconiza a refinada arte dos sentidos das culturas orientais, uma superação da frustração: “Tal e qual o mundo o é, não poderia aceitá-lo. Contudo, é nele que existo. Porém, se já não posso mudá-lo de todo, não mais me inquieta o espírito a sua face que me é mais estranha”. Se sigo aqui, na penumbra, com meu desgosto, mesmo este afeto é preciso superá-lo. É preciso despoluir o espírito, descontaminar os símbolos da carga de sentidos corrompidos que os ruins lhes deram. O sol não deixa de brilhar apenas porque algumas retinas já se cansaram de sua luz... É preciso perdoar a si mesmo e expurgar os seus medos: assim, a vida ressurge para enxerga-lo através de outras retinas. Que para tal se evoque os espíritos livres que fizeram a travessia com altivez e vontade mais pura, que trilharam caminhos nunca antes trilhados. É preciso, em resumo, aceitar a vida e o destino mesmo sob a dor mais infinita. Aceitar e — por que não? — amar. 

Foto da capa: Ipê do CEF 2 de Ceilândia

 

- Link para download aqui: https://drive.google.com/drive/folders/1-YdAGYKYbT8YVnTjKw34wIsFEg0MvFFe?usp=sharing

- Chave-pix para contribuições voluntárias: 029.811.391-00 (CPF, Juliano Berquó Camelo).


Juliano Berko

 

Sehnsucht & Shoganaiou “Anseio & Superação

[2023]

 

1.Onde Brincam As Crianças?

[“Where Do The Children Play?”, Cat Stevens/Versão: Juliano Berko]

2.Aftersun[Juliano Berko]
3.Sociedade Paliativa[Juliano Berko]
4.Sonetos Para Não Morrer” [Juliano Berko]
5.Por Que Não Amar?” [Juliano Berko]
6.Papillon” [Juliano Berko]
7.Bicho Que Se Cria Solto[Juliano Berko]
8.Allegro, Ma Non Troppo” [Juliano Berko]
9.“Despoluindo Belchior” [Juliano Berko]
10.“Camelo” [Juliano Berko]
11.Filha da Alegria[Juliano Berko]
12.“Banzai!” [Juliano Berko]

Paráfrase VIII

 

“Não construa sua casa demasiado grande para que não abrigue nela coisas supérfluas (i.e., mulheres)”

 Pitágoras, com notas do editor