terça-feira, 26 de setembro de 2017

Eu Era Um Lobisomen Juvenil

Existe pouca, talvez até nenhuma, coisa mais patética, ridículo atestado de impotência diante da vida, que a intolerância estética, por assim dizer, dos que afirmam o "rock", seja lá o que isso signifique, enquanto identidade. Aqueles que contemplam a diversidade e a acolhem são os responsáveis por um mundo novo, melhor.
Mas não há nada como a experiência. Eu mesmo já fui um lobisomem juvenil...

quarta-feira, 13 de setembro de 2017

O Pai Nosso Subvertido

Noves fora o analfabetismo funcional que impede uma parcela significativa da humanidade cristã, especialmente no Brasil, de interpretar os seus significados, o texto desta que é a mais completa, perfeita oração do cristianismo, a que foi ensinada pelo pregado, revela muito de seu caráter de advogado dos pobres de espírito e explica em parte o por que padece a humanidade

"Pai nosso que estais nos céus
Santificado seja o vosso nome
Venha a nós o vosso reino
Seja feita a vossa vontade
Assim na Terra como nos céus
O pão nosso de cada dia nos dai hoje
E perdoai as nossas ofensas
Assim como nós perdoamos
A quem nos tem ofendido
E não nos deixeis cair em tentação
Mas livrai-nos do mal
Amém"
[Jesus de Nazaré, Mateus, 6:9-13]

Ora,

1)  "Pai", "padre", "patrão", "pátria": significantes com a mesma raiz linguística. A naturalização da autoridade moral (ou a moralização de uma autoridade natural, como queiram os conservadores, tanto faz) dos que vieram primeiro (pai), conquistaram a terra e os seus recursos (patrão) e estabeleceram a sua sociedade (pátria) e a sua moralidade/modo-de-pensar (padre), transporta para o reino da linguagem a coação física e material a que estão sujeitos os demais "filhos", "fiéis", "súditos", "aprendizes", etc.; 

2) O pai, ele está "nos céus" — um espaço etéreo, construído na imaginação, como quando enxergamos formas e objetos nas nuvens; domínio do universo onírico, pois, é para lá que vão aqueles que morrem: para os sonhos dos vivos — e de lá nos ordena: "Santifiquem o meu nome!, pois, eu sou tal e qual o fantasma, o "espírito santo" (em inglês "holy ghost") que habita o vosso inconsciente, assombrando a todos os que ousam estabelecer uma nova moral, uma nova partilha das riquezas da Terra, novas formas de relações sociais, etc. etc. Ao fim e ao cabo, mantenham as aparências, modifiquem a forma, mas deixem inalterada a função daquilo que criei". De sorte que também aqui, no presente, é feita a vontade do "pai" fundador de uma linhagem vitoriosa de uma determinada forma de sociedade

3) Essa simplificação oferecida pelo monoteísmo semítico, que encarna todas as potências divinas da antiguidade em um único ente, é uma evolução tecno-política do mito: um enredo tal qual o grego, por exemplo, era por demais confuso, conflituoso, enredado em tramas interdeidades que colocam o leitor em posição de espectador passivo, a espera de uma reviravolta política, explosões passionais daqueles deuses... tão humanos; de modo que há um custo psicológico mais elevado, de carga afetiva mais pesada, para que o mito seja assimilado e difundido através de povos mais rústicos, de linguagem, modos e pathos mais moderados que os gregos, estes últimos em avançado estado de organização social e, posteriormente, em decadência — fato evidenciado pela sua conversão ao cristianismo ao fim da fase clássica: um povo "doente" procurando a "cura" (uma etapa anterior àquilo que Nietzsche chama de "grande saúde": decair, procurar o que nos adoece mais; um corpo febril querendo cobrir-se com tecido grosso em um dia de calor); 

4) O pão nosso de cada dia é a ração, a migalha, que vos é ofertada pelos vossos "pais" patrões. Aqui resta evidente o absoluto caráter servil desta religião perniciosa, que cresceu entre os escravos da antiguidade, a ponto de render o Império Romano com Constantino, que percebeu, num senso de oportunidade, a função social desse novo mito que glorifica o trabalho (do latim: "tripalium", um instrumento de tortura que arranca para fora as tripas) diante da consciência dos escravos. Este talvez seja o ponto em que muito pouco mudou ao longo dos últimos dois milênios. O fato de que a mera ideia do comunismo enquanto abolição da propriedade privada/individual dos meios de produzir ofenda tanto o pudor de tantos ainda é um sinal do patamar moral em que estamos. Cabe aqui ressaltar o papel que um esquerdismo condescendente teve na apodrecida democracia brasileira (poderíamos dizer no "ideal democrático do ocidente", dado que é um fenômeno global) para o florescimento de tal abjeto fenômeno; 

5) Obedecer não é tão fácil quanto parece. Isso o sabem os filhos adolescentes, os proletários indolentes. É uma arte tão apurada quanto saber comandar. Não à toa Nietzsche coloca a obediência como um afeto nobre [contudo, partindo do pressuposto que a autoridade de quem comanda é legítima]. Nesse contexto, em que poucos podem [têm o poder de] obedecer, comandar e criar novas ordens, é recorrente o pedir clemência, buscar indulgência: "Perdoai as nossas ofensas... Eu desejei sua mulher, pai, uma virgem santa, e não pude superar a vergonha e o horror de tal feito, é preciso que um deus muito vingativo me puna, e um mesmo deus muito amoroso me perdoe, porque me compreende, de mim se compadece, sofre comigo. Eu também me revoltei contra meu senhor, meu "patrão", pois, cobicei de sua riqueza. Logo ele, que é quem permite que eu coma e viva! Eu me rebelei contra a moralidade, padre, quis o paraíso aqui e agora; eu tornei-me proscrito em minha terra, desejei conhecer paisagens e novas paragens dos povos vizinhos de língua estranha e belas dançarinas de misteriosos olhos entrevelados; por tudo isso, eu peço perdão! E perdoai também àqueles que me atacaram enquanto me dominava a furiosa paixão de meus anseios! Ou ainda os que me atacaram possuídos pelos anseios deles. Perdão, perdão, perdão!" — Para que haja perdão é preciso haver — culpa. Uma máquina de produzir culpas: é a isto o que chamam de pai os cristãos. É preciso ser muito rico de espírito, ser dotado de profunda introspecção, afiada inteligência dialética, rigorosa honestidade de caráter para não ser cristão. Inclusive, bom gosto e instintos saudáveis para sequer ser capaz de tolerar o espetáculo horroroso do espírito de rebanho... Todavia, quero evitar falar de mim;

6) O diabo, aquele que possui as mais amplas perspectivas de deus, pois, dele mantém-se distante*, consubstancia-se no conhecimento. Desde sempre, foi proibida somente, em princípio, a verdade, a sua busca, a sua rota, o seu desejo. Instigar a conhecer a verdade, o "outro lado do muro", o oculto, a "pia fraus", o comunismo, a subjetivação subversiva do sujeito consciente na produção da história [a grande contribuição do marxismo para a humanidade], o sexo diverso, por puro prazer e luxúria, etc é a arte que domina Lúcifer, o "portador da luz". O próprio nome — por mais óbvio que seja e que isso tenha sido comentado apenas indiretamente em um único livro é um espanto — "tentação" tipifica em um único artigo o crime: tentar! Aqui a importância cabal da castração do instinto sexual desde a infância para a manutenção deste modelo de subjetivação, que produz proletários, não operários. A libido sexual, primeira e última, única, segundo Osho, energia do espírito humano, é a chave para o controle de todos os demais anseios e pulsões de vida do corpo. A minúcia com que se descreve este processo por Reich, e o ruído, murmúrio ao seu redor após décadas, é outro dado que atesta a decadência da humanidade: prefere-se crer naquilo que é a doença de milênios... Como diria Zaratustra, é uma religião que prega a morte, ops!, a "vida eterna"

7) "Mas livrai-nos do mal. Amém": que significa: "que assim seja"! Há aqui alguma honestidade na linguagem, conferindo ao acaso dos acontecimentos, o caos, algum poder decisório no universo. Após um potente esforço da vontade do espírito — "seja feita a vossa vontade", "não nos deixeis cair em tentação", etc. — reconhece-se que, no fundo, tudo depende de que o universo nos seja generoso em sorte! Ah, soubessem os cristãos que este deus punitivo, com tal vacilante amor, é tão impotente e frágil... Este deus não fora feito à imagem e semelhança de uma espécie de humanidade? Mas muitas outras são possíveis!

Pobre de ti, nazareno, que morreu pregado entre ladrões, abandonado por teu pai, nada deveria ofender mais tua memória que o desvirtuamento da tua oração — e que ainda hoje ela viceja na boca de quem te crucifica!

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

A Corrupção da Estética

1. Ante o feio, a beleza é um imperativo ético. É preciso ser belo. 

2. Para que haja o reconhecimento do belo, é necessário, portanto, que haja o feio em abundância. Logo, há toda uma indústria de produção da feiúra. E uma informalidade, por assim dizer, no mercado da beleza.

3. A estética da modernidade é a última consequência do embotamento gerado pela indústria da feiúra. O feio foi elaborado à exaustão, tomado como quintessência do belo, posto que o que é vulgar foi elevado à categoria de desejado, objetivo comum, referencial para o repertório do ser humano médio. 

4. Assim opera toda área da economia que se utilize de referenciais estéticos -- a saber: vestuário, música, cinema, teatro, mercado imobiliário, etc. -- através de uma profusão de réplicas de um acaso raro, que seria belo, vulgariza o feio. 

5. Nesse estágio, necessário é para nós, os raros, retornar à postura belicosa de enfrentamento diante do oceano de feiúras. Lutar pelo florescimento de um novo acaso raro de cores e formas e sons e profundidades: o que é mais belo é a luta! Rechaçar o "desejado" como belo! O que todos devem querer -- eu não quero! O que se cria em qualquer esquina -- eu quero criar a um patamar acima. 

Um faro para a corrupção da estética sempre me colocara à parte. Melhor assim.