sexta-feira, 31 de março de 2023

A Primeira Indústria & Os Paliativos

1. Enquanto escrevo, ouço os ruídos da construção do edifício no lote vizinho, rotina de já quase 2 anos e reflito: a única verdadeira indústria — no sentido de transformação da natureza em algo útil para a sociedade — é a construção civil. É nessa indústria que deveria haver sobrecarga de trabalho, garantido o mínimo existencial, a habitação, para todos. Deveria ser a função primeira de toda a vida em sociedade e dessa indústria todas as pessoas produtivas deveriam tomar parte em algum momento. Infinitamente mais útil e interessante que servir às forças armadas. 

2. Contudo, a escassez artificialmente produzida sustenta a economia financeira e a apropriação desigual da renda: é preciso que haja esta escassez para que a classe média possa se sentir compelida a sustentar uma dívida por 30 anos para adquirir uma habitação na periferia de Brasília, Samambaia ou Ceilândia, por exemplo. Essa escassez é o véu que cobre a função da sociedade do desempenho: a enorme transferência de renda do trabalho para o capital improdutivo. Pagar à instituição de menores juros, 3 vezes o valor do imóvel ao fim do empréstimo.  

3. Já não existem mais novas cidades. Esse tempo já passou. Pensar novas cidades exigiria pensar novas sociedades: algo proibido na sociedade do desempenho. Todas as dores existenciais produzidas nesse esforço são aliviadas pelos inúmeros paliativos: toda a cultura de massas, da mais refinada às mais vulgares, participam deste esforço. 

4. Todos deveríamos trabalhar menos. Tal seria a tarefa de uma sociedade em que Eros fosse a força motriz. Trabalhar menos para trabalharmos todos, restando tempo para a tarefa mais árdua da vida: a conquista da felicidade. A sociedade paliativa é o meio de a sociedade do desempenho se perpetuar, é o capitalismo mais refinado, escamoteando a função do excesso de trabalho exigido e, após a morte do marxismo, criar uma narrativa e uma forma que sustente a moderna escravidão por dívidas. 

5. Também o trabalho não remunerado dos cuidadores das crianças deveria ser considerado. Até pouco tempo, esta era função primordialmente destinada às mulheres. O avanço das forças produtivas que libertaram a mulher do trabalho doméstico destruiu a base material para a existência das famílias, esta estrutura arcaica, mas mal substitui o trabalho de quem cuida das crianças, sobrecarregando os cuidadores (pais, mães, avós, irmãos mais velhos, amigos, a tal "rede de apoio"). Quem dedica horas de sua semana a cuidar das crianças deveria ser justamente remunerado pela sociedade: desempenha a função de garantir o seu futuro. 

6. O acúmulo de capital se dissipa com a morte do acumulador. Herdeiros são desprezíveis e ineficientes na imensa maioria dos casos. Toda a riqueza produzida deveria ser reinvestida na sociedade. 

7. A sobrecarga de trabalho nos ombros de alguns, o lumpem jogado à criminalidade e ao trabalho informal, as igrejas, que nada têm de instituições religiosas, cumprem todos a função de sustentar as formas de cultura arcaicas, as relações sociais e produtivas em decadência: o apego a elas, em face do seu desmoronamento, induz à violência, crimes passionais & neuroses sem fim. A classe dominante bem sabe disso e permeia a sociedade de paliativos e repressão a todo o momento. 

8. Uma das neuroses fundamentais nas relações sexuais — a preocupação com a geração de crianças — praticamente desapareceria se aquela indústria mencionada fosse ampliada, se novas habitações, edifícios e casas, cidades e comunidades pudessem florescer. Para não citar os direitos reprodutivos, em especial o aborto, pois estes perpetuam o status quo da sociedade, são, por evidente, paliativos

sábado, 11 de março de 2023

Formas Decadentes da Cultura: A Agonia do Eros

1. Tentando seguir à risca a lei da boa escrita segundo a qual só se deve escrever daquilo que se superou — todo o resto é tagarelice, "literatura". Superado o nojo, carrego o tinteiro:

2. Quase impossível fugir de comentar (talvez irresistível!) sobre uma polêmica recente envolvendo uma sujeita, "Mc qualquer coisa", crucificada por ter desdenhado e humilhado — como o faz, no fim das contas, toda a sociedade brasileira — os professores, essa categoria de gente ressentida como só pode ser quem escolhe na vida a batalha diuturna contra a ignorância numa sociedade que premia a astúcia dos canalhas e semeia muita estupidez, colhendo safras recordes de imbecis, e que não declara à Receita Federal em um ano o que a dita cuja recebe em meia hora de palco em seu show pornográfico e de gosto questionável. Um evento que será realizado na UFRN cancelou a participação da funkeira após a sua fala arrogante contra os pobres professores. Também outros locais cancelaram a participação da sujeita de suas agendas, segundo me consta, até mesmo uma boate da moda na Ceilândia...

3. Está ali no "Além do bem e do mal": somos melhores punidos pelas nossas virtudes. O que não se desculpa na tal Mc, o que lhe é imperdoável é a sua honestidade: poderia pensar o que bem quisesse dos professores ou de qualquer outra categoria profissional ou assunto — por evidente, um direito seu —, desde que não comunicasse publicamente o seu pensamento; que não defendesse o seu fazer profissional (foi o que lhe levou a comentar sobre os professores...) e cumprisse hipocritamente o papel que lhe foi designado pelo engajamento: oferecer um espetáculo com conteúdos sexualmente explícitos para uma juventude, contra todas as aparências, castrada¹; possibilitar excitação emocional numa sociedade torporificada pela brutal violência, miséria, fome, etc.; contribuir para a venda de álcool e outras drogas que encerram nas pessoas as possibilidades de resolução de suas contradições, e ainda fazendo girar a pitoresca e imensa engrenagem econômica por trás dessa economia; por fim, e em resumo: entreter as massas

4. O que gente da espécie dessa funkeira faz em eventos culturais em espaços das universidades e em locais tidos como de vanguarda intelectual, estética e política? Esta é a verdadeira polêmica que deveria ser objeto de reflexão séria, profunda e rigorosa. 

5. Arrisco uma ou outra hipótese: 

5.1. A pretexto de defender a diversidade, se acolhe qualquer entulho cultural, em especial, quando atiça e envolve o pink money;

5.2. Os valores dominantes se refletem e se reafirmam ali: o verdadeiro Deus, o dinheiro, medida de todas as coisas e pessoas, e seu emissário na era contemporânea, o "engajamento" (não menciono nomes aqui para não evocar tal espírito zombeteiro dos robozinhos-espiões das abomináveis redes sociais);

5.3. Os ambientes acadêmicos se encontram em longo processo de decadência mesmo, e evitarei até me alongar nesse ponto por puro desgosto... Os macacos treinados da CAPES/CNPQ, os oportunistas despudorados e carreiristas desavergonhados das universidades, que pregam estrelas nas próprias testas e chamam isso de "currículo lattes" que pululam em qualquer seminário, conferência ou sarau certamente mudarão o mundo — pra pior. Toda abnegação é covardia, medo do espelho, manifestação da vontade/estratégia de dar um fim em si mesmo. À serviço de reproduzir a estupidez, coloca-se parte considerável do que se pode chamar de massa crítica. Eis, em uma fórmula, a descrição dessa decadência, desse processo. Há cerca de 12 anos eu estava nas manifestações contra os cortes bilionários do orçamento da educação no início do governo Dilma. Tivemos a indignidade de eleger Bolsonaro e a desfaçatez de ver o atual Lula não prometer e não cumprir revogar o Novo Ensino Médio, a reforma trabalhista, da previdência, o teto de gastos... Estamos objetivamente condenados a décadas de destruição do Estado e esgarçamento do tecido social, órfãos dos feminicídios e sociopatas de clubes de tiros. 

6. A capacidade de expressão simbólica parece consideravelmente reduzida, pra dizer em termos modestos, até. "Quando não é mais necessário o espírito, se perde o espírito", algo nesse sentido escrevera Nietzsche no "Crepúsculo dos Ídolos". O hábito da visualização em detrimento da leitura, do like em detrimento da crítica reflexiva, nos levará à ruína da inteligência mesma, a vitória final do rebanho, das massas sem rosto que se identificam com o poder do dinheiro cavalgando os algoritmos como cavaleiros do apocalipse tocando a boiada, sobre as vacas profanas que se colocam pra fora e acima dessa manada. 

7. Ah, como Caetano, eu também rogo à deusa de assombrosas tetas que derrame o leite bom na minha cara e o leite mau na cara dos caretas! Talvez haja um espetáculo contemporâneo em que se materialize e pratique essas metáforas em algum lugar...!


¹Nota: sobre esse ponto, transcrevo trecho do ensaio "Pornografia", de Byung-Chul Han: 

"A pornografia serve ao mero viver exposto. É o exato contraposto de Eros. Ela aniquila a sexualidade. Nesse sentido, é muito mais efetiva que a moral. [...] O obsceno na pornografia não reside no excesso de sexo, mas no fato de não ter sexo. A sexualidade não se vê ameaçada por aquela "razão pura" que evita o sexo, antiprazerosamente, como algo "sujo", mas pela pornografia; a pornografia não é sexo em espaço virtual. Mesmo o sexo real se transforma hoje em pornografia. A pornografização do mundo se realiza como sua profanação. Ela profana o erotismo. [...] O capitalismo acentua a pornografização da sociedade, expondo e exibindo tudo como mercadoria. Ele não conhece nenhum outro uso da sexualidade. Profana o eros em pornografia." 

["Agonia de Eros", 2012]