domingo, 31 de dezembro de 2023

"Sehnsucht & Shoganai ou Anseio & Superação" (2023)

Contracapa do álbum, inspirada na arte gráfica das edições de Byung-Chul Han pela editora Vozes

 

Diria, como metáfora, que uma vez que nos afastamos da influência de outras gravidades, seguimos adiante no universo movidos pela nossa força propulsora inicial — já não podemos parar, já não olhamos para trás. A esta altura da vida nos é dado apenas seguir adiante. Este álbum, esta coleção de canções que são a expressão da minha experiência mais íntima na existência; a minha suma, cujas opiniões e sentenças são mais minhas quanto mais universais se apresentem, é este astro solitário que se afasta, na amplidão do universo, criando sempre mais espaço entre si e os demais. A grande explosão que originou esse movimento ocorreu há quase 20 anos... “Sociedade Paliativa”, baseada no gozo triste com a leitura do transdesesperançoso filósofo coreano-alemão Byung-Chul Han, é a canção que, neste álbum, se filia à tradição inaugurada em “Sociedade do Consumo” (“Concreto Armado”, 2005), dos meus remotos esforços críticos em forma poética. No todo, reserva mais semelhanças com um irmão mais velho, “Καιρός (2016): os mesmos gosto de lágrimas e cheiro de sangue; o mesmo desespero e ranço do espírito de asas quebradas, rastejante como um verme que ainda não se recriou no casulo; a mesma embriaguez e entorpecimento de uma alma destroçada, entregue e prostrada à beira do “caminho de dor infinita, de decadente ganho, daquele que está cansado de chorar” (“The path of endless pain, of decaying gain, of whom is tired to cry”, assim um eu-lírico envenenado e cansado de seu próprio veneno cantava então em “Mitleiden In Der Mitternacht”). “Sehnsucht” como se chama a nostalgia por algo não vivido, o anseio inominável por um mundo que existe apenas enquanto estado do espírito e que, assim, se realiza, a força motriz, a eterna chama, o “longo caminho” do desejo. Ah, o jumento só diz “sim” se ele fala alemão! [“ia!” é a onomatopeia do “zurro” do jumento na língua materna da filosofia moderna]. Este belo burro de carga aprendeu a ler a dor e a alegria da vida em mais de uma língua e em cotejo com várias traduções; a escrever em vernáculo o fluxo de sons & sinais de seu espírito, cantado em canções. Este camelo sabe que o deserto cresce, que o conhecimento da vida amplia seus limites e as noites e os pequenos prazeres encontrados na aridez já não soam tão agradáveis quanto antes. Para acolher novamente a mais rara beleza das asas das borboletas e da ventura de todos os bichos que se criam soltos, será preciso recuperar a inocência da vontade, justifica-la e redimi-la... “Shoganai” não meramente como uma aceitação passiva da realidade, mas, como preconiza a refinada arte dos sentidos das culturas orientais, uma superação da frustração: “Tal e qual o mundo o é, não poderia aceitá-lo. Contudo, é nele que existo. Porém, se já não posso mudá-lo de todo, não mais me inquieta o espírito a sua face que me é mais estranha”. Se sigo aqui, na penumbra, com meu desgosto, mesmo este afeto é preciso superá-lo. É preciso despoluir o espírito, descontaminar os símbolos da carga de sentidos corrompidos que os ruins lhes deram. O sol não deixa de brilhar apenas porque algumas retinas já se cansaram de sua luz... É preciso perdoar a si mesmo e expurgar os seus medos: assim, a vida ressurge para enxerga-lo através de outras retinas. Que para tal se evoque os espíritos livres que fizeram a travessia com altivez e vontade mais pura, que trilharam caminhos nunca antes trilhados. É preciso, em resumo, aceitar a vida e o destino mesmo sob a dor mais infinita. Aceitar e — por que não? — amar. 

Foto da capa: Ipê do CEF 2 de Ceilândia

 

- Link para download aqui: https://drive.google.com/drive/folders/1-YdAGYKYbT8YVnTjKw34wIsFEg0MvFFe?usp=sharing

- Chave-pix para contribuições voluntárias: 029.811.391-00 (CPF, Juliano Berquó Camelo).


Juliano Berko

 

Sehnsucht & Shoganaiou “Anseio & Superação

[2023]

 

1.Onde Brincam As Crianças?

[“Where Do The Children Play?”, Cat Stevens/Versão: Juliano Berko]

2.Aftersun[Juliano Berko]
3.Sociedade Paliativa[Juliano Berko]
4.Sonetos Para Não Morrer” [Juliano Berko]
5.Por Que Não Amar?” [Juliano Berko]
6.Papillon” [Juliano Berko]
7.Bicho Que Se Cria Solto[Juliano Berko]
8.Allegro, Ma Non Troppo” [Juliano Berko]
9.“Despoluindo Belchior” [Juliano Berko]
10.“Camelo” [Juliano Berko]
11.Filha da Alegria[Juliano Berko]
12.“Banzai!” [Juliano Berko]

Paráfrase VIII

 

“Não construa sua casa demasiado grande para que não abrigue nela coisas supérfluas (i.e., mulheres)”

 Pitágoras, com notas do editor

sexta-feira, 31 de março de 2023

A Primeira Indústria & Os Paliativos

1. Enquanto escrevo, ouço os ruídos da construção do edifício no lote vizinho, rotina de já quase 2 anos e reflito: a única verdadeira indústria — no sentido de transformação da natureza em algo útil para a sociedade — é a construção civil. É nessa indústria que deveria haver sobrecarga de trabalho, garantido o mínimo existencial, a habitação, para todos. Deveria ser a função primeira de toda a vida em sociedade e dessa indústria todas as pessoas produtivas deveriam tomar parte em algum momento. Infinitamente mais útil e interessante que servir às forças armadas. 

2. Contudo, a escassez artificialmente produzida sustenta a economia financeira e a apropriação desigual da renda: é preciso que haja esta escassez para que a classe média possa se sentir compelida a sustentar uma dívida por 30 anos para adquirir uma habitação na periferia de Brasília, Samambaia ou Ceilândia, por exemplo. Essa escassez é o véu que cobre a função da sociedade do desempenho: a enorme transferência de renda do trabalho para o capital improdutivo. Pagar à instituição de menores juros, 3 vezes o valor do imóvel ao fim do empréstimo.  

3. Já não existem mais novas cidades. Esse tempo já passou. Pensar novas cidades exigiria pensar novas sociedades: algo proibido na sociedade do desempenho. Todas as dores existenciais produzidas nesse esforço são aliviadas pelos inúmeros paliativos: toda a cultura de massas, da mais refinada às mais vulgares, participam deste esforço. 

4. Todos deveríamos trabalhar menos. Tal seria a tarefa de uma sociedade em que Eros fosse a força motriz. Trabalhar menos para trabalharmos todos, restando tempo para a tarefa mais árdua da vida: a conquista da felicidade. A sociedade paliativa é o meio de a sociedade do desempenho se perpetuar, é o capitalismo mais refinado, escamoteando a função do excesso de trabalho exigido e, após a morte do marxismo, criar uma narrativa e uma forma que sustente a moderna escravidão por dívidas. 

5. Também o trabalho não remunerado dos cuidadores das crianças deveria ser considerado. Até pouco tempo, esta era função primordialmente destinada às mulheres. O avanço das forças produtivas que libertaram a mulher do trabalho doméstico destruiu a base material para a existência das famílias, esta estrutura arcaica, mas mal substitui o trabalho de quem cuida das crianças, sobrecarregando os cuidadores (pais, mães, avós, irmãos mais velhos, amigos, a tal "rede de apoio"). Quem dedica horas de sua semana a cuidar das crianças deveria ser justamente remunerado pela sociedade: desempenha a função de garantir o seu futuro. 

6. O acúmulo de capital se dissipa com a morte do acumulador. Herdeiros são desprezíveis e ineficientes na imensa maioria dos casos. Toda a riqueza produzida deveria ser reinvestida na sociedade. 

7. A sobrecarga de trabalho nos ombros de alguns, o lumpem jogado à criminalidade e ao trabalho informal, as igrejas, que nada têm de instituições religiosas, cumprem todos a função de sustentar as formas de cultura arcaicas, as relações sociais e produtivas em decadência: o apego a elas, em face do seu desmoronamento, induz à violência, crimes passionais & neuroses sem fim. A classe dominante bem sabe disso e permeia a sociedade de paliativos e repressão a todo o momento. 

8. Uma das neuroses fundamentais nas relações sexuais — a preocupação com a geração de crianças — praticamente desapareceria se aquela indústria mencionada fosse ampliada, se novas habitações, edifícios e casas, cidades e comunidades pudessem florescer. Para não citar os direitos reprodutivos, em especial o aborto, pois estes perpetuam o status quo da sociedade, são, por evidente, paliativos

sábado, 11 de março de 2023

Formas Decadentes da Cultura: A Agonia do Eros

1. Tentando seguir à risca a lei da boa escrita segundo a qual só se deve escrever daquilo que se superou — todo o resto é tagarelice, "literatura". Superado o nojo, carrego o tinteiro:

2. Quase impossível fugir de comentar (talvez irresistível!) sobre uma polêmica recente envolvendo uma sujeita, "Mc qualquer coisa", crucificada por ter desdenhado e humilhado — como o faz, no fim das contas, toda a sociedade brasileira — os professores, essa categoria de gente ressentida como só pode ser quem escolhe na vida a batalha diuturna contra a ignorância numa sociedade que premia a astúcia dos canalhas e semeia muita estupidez, colhendo safras recordes de imbecis, e que não declara à Receita Federal em um ano o que a dita cuja recebe em meia hora de palco em seu show pornográfico e de gosto questionável. Um evento que será realizado na UFRN cancelou a participação da funkeira após a sua fala arrogante contra os pobres professores. Também outros locais cancelaram a participação da sujeita de suas agendas, segundo me consta, até mesmo uma boate da moda na Ceilândia...

3. Está ali no "Além do bem e do mal": somos melhores punidos pelas nossas virtudes. O que não se desculpa na tal Mc, o que lhe é imperdoável é a sua honestidade: poderia pensar o que bem quisesse dos professores ou de qualquer outra categoria profissional ou assunto — por evidente, um direito seu —, desde que não comunicasse publicamente o seu pensamento; que não defendesse o seu fazer profissional (foi o que lhe levou a comentar sobre os professores...) e cumprisse hipocritamente o papel que lhe foi designado pelo engajamento: oferecer um espetáculo com conteúdos sexualmente explícitos para uma juventude, contra todas as aparências, castrada¹; possibilitar excitação emocional numa sociedade torporificada pela brutal violência, miséria, fome, etc.; contribuir para a venda de álcool e outras drogas que encerram nas pessoas as possibilidades de resolução de suas contradições, e ainda fazendo girar a pitoresca e imensa engrenagem econômica por trás dessa economia; por fim, e em resumo: entreter as massas

4. O que gente da espécie dessa funkeira faz em eventos culturais em espaços das universidades e em locais tidos como de vanguarda intelectual, estética e política? Esta é a verdadeira polêmica que deveria ser objeto de reflexão séria, profunda e rigorosa. 

5. Arrisco uma ou outra hipótese: 

5.1. A pretexto de defender a diversidade, se acolhe qualquer entulho cultural, em especial, quando atiça e envolve o pink money;

5.2. Os valores dominantes se refletem e se reafirmam ali: o verdadeiro Deus, o dinheiro, medida de todas as coisas e pessoas, e seu emissário na era contemporânea, o "engajamento" (não menciono nomes aqui para não evocar tal espírito zombeteiro dos robozinhos-espiões das abomináveis redes sociais);

5.3. Os ambientes acadêmicos se encontram em longo processo de decadência mesmo, e evitarei até me alongar nesse ponto por puro desgosto... Os macacos treinados da CAPES/CNPQ, os oportunistas despudorados e carreiristas desavergonhados das universidades, que pregam estrelas nas próprias testas e chamam isso de "currículo lattes" que pululam em qualquer seminário, conferência ou sarau certamente mudarão o mundo — pra pior. Toda abnegação é covardia, medo do espelho, manifestação da vontade/estratégia de dar um fim em si mesmo. À serviço de reproduzir a estupidez, coloca-se parte considerável do que se pode chamar de massa crítica. Eis, em uma fórmula, a descrição dessa decadência, desse processo. Há cerca de 12 anos eu estava nas manifestações contra os cortes bilionários do orçamento da educação no início do governo Dilma. Tivemos a indignidade de eleger Bolsonaro e a desfaçatez de ver o atual Lula não prometer e não cumprir revogar o Novo Ensino Médio, a reforma trabalhista, da previdência, o teto de gastos... Estamos objetivamente condenados a décadas de destruição do Estado e esgarçamento do tecido social, órfãos dos feminicídios e sociopatas de clubes de tiros. 

6. A capacidade de expressão simbólica parece consideravelmente reduzida, pra dizer em termos modestos, até. "Quando não é mais necessário o espírito, se perde o espírito", algo nesse sentido escrevera Nietzsche no "Crepúsculo dos Ídolos". O hábito da visualização em detrimento da leitura, do like em detrimento da crítica reflexiva, nos levará à ruína da inteligência mesma, a vitória final do rebanho, das massas sem rosto que se identificam com o poder do dinheiro cavalgando os algoritmos como cavaleiros do apocalipse tocando a boiada, sobre as vacas profanas que se colocam pra fora e acima dessa manada. 

7. Ah, como Caetano, eu também rogo à deusa de assombrosas tetas que derrame o leite bom na minha cara e o leite mau na cara dos caretas! Talvez haja um espetáculo contemporâneo em que se materialize e pratique essas metáforas em algum lugar...!


¹Nota: sobre esse ponto, transcrevo trecho do ensaio "Pornografia", de Byung-Chul Han: 

"A pornografia serve ao mero viver exposto. É o exato contraposto de Eros. Ela aniquila a sexualidade. Nesse sentido, é muito mais efetiva que a moral. [...] O obsceno na pornografia não reside no excesso de sexo, mas no fato de não ter sexo. A sexualidade não se vê ameaçada por aquela "razão pura" que evita o sexo, antiprazerosamente, como algo "sujo", mas pela pornografia; a pornografia não é sexo em espaço virtual. Mesmo o sexo real se transforma hoje em pornografia. A pornografização do mundo se realiza como sua profanação. Ela profana o erotismo. [...] O capitalismo acentua a pornografização da sociedade, expondo e exibindo tudo como mercadoria. Ele não conhece nenhum outro uso da sexualidade. Profana o eros em pornografia." 

["Agonia de Eros", 2012]

quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

Soneto Nº1 (Da Alma Prodigalizada)

Soneto d’Alma Prodigalizada

 

 Deleuze se jogou da janela 

Paul Lafargue bebeu cicuta

Nietzsche esperou por ela,

A morte, aquela filha da puta

 

Cristo foi pregado na cruz

A bala atravessou Che Guevara

E também o poeta andaluz

A monstruosidade fuzilara

 

Giordano ardeu na fogueira

Victor Jara cantou na tortura

Nessa hora, poucos têm coragem

 

De tingir de vermelho a bandeira

Com altivez e vontade mais pura

Findar sua grande viagem

 

Juliano Berko,

25/01/23.