quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

Posfácio ao "Caderno de Poemas..."

Está aí, enfim, o resultado desse ano absolutamente horroroso, o pior de toda a minha vida até aqui (impensável que conseguiria ser pior, que tive que testar mais os meus limites e fundamentos afetivos, intelectuais, políticos, que em 2016! Pior, mais profundamente dolorido, mais atacado pelo forte consolo, que em 2013!)! Ah, neste nebuloso dezembro ainda não é possível me libertar da vergonha de minhas superações, do nojo de minhas descobertas, da frustração após o teste de minhas hipóteses! Como ainda é pobre a humanidade, como ainda habita um patamar tão inferior — à minha altura... Findadas estas canções eu senti necessidade de asseio: colocar isso tudo pra fora não pode ser feito sem colocar também muita sujeira, imundície. Foi um difícil — parto natural... Mais que ter vontade, eu preciso de um banho: voar de volta para 2020 e mergulhar nas águas puras que vertem das minhas obras leves, das minhas alturas, as mais elevadas cascatas do espírito humano, “Sete Copas...” e “Ruínas do Futuro”: aquele sereno olhar lançado para além de mim, soberano de mim em tudo na vida; aquela zombeteira, alegre, maldade; aquela tranquila e concisa consideração sobre os assuntos “primeiros e últimos”! Já aqui, nestes “Cadernos de Poemas...”, tudo padece do inverso: peso demais vergou meu lombo, eu, este belíssimo burro-de-carga, tive que fazer de mim mesmo mais forte do que jamais fui, portanto, mais assustador; mais corajoso que jamais fui, logo, mais imprudente; e mais estúpido que jamais fui também (Como pude consagrar, em nome do conhecimento, o meu conhecimento da vida, tantas e tão vergonhosas, dolorosas, poluídas experiências? Ah, como fui tão cruel — com quem amo, e, muito antes, comigo mesmo e com meu orgulho! Coloquei nele um torniquete e apertei pra ver até onde seria capaz de suportar e agora vejo que o mesmo sucumbiu... este posfácio mesmo lhe serve como rito funerário!). Desespero demais ressoa nestes cantos gritados no meu estúdio em Samambaia. Recomendo cautela e bom estômago pro meu ouvinte, e que seja indulgente comigo: se fiz o que fiz, foi em vigília à aurora vindoura, a amiga das musas. Agora vejo que empunhei por tempo demais a minha espada e seu peso me tirou o tônus: minha força monstruosa, desumana, de repente se perdeu e saí dilacerando a mim mesmo, incendiando todo o horizonte de minha vida. Se ao longo desta madrugada, as inspirações me foram mais soturnas e tantas vezes me apavoraram, melhor sorte pra mim no próximo ano! Cave musicam, amigos! Acautelem-se diante destas canções! Elas podem fazê-los chorar dias seguidos, se embriagar ao ponto da amnésia, se envergonhar até mesmo do seu melhor amor ou tremer de ódio e desespero diante dos dilemas e dramas da vida... Tudo isso experimentei gestando elas no meu espírito, em verdade. E, por fim, perdoem-me também tanta sinceridade: esta minha virtude foi esticada ao ponto de tornar-se um vício. Que eu recobre a maestria da sua dose adequada e que para isso me ajude a minha maldade, meu lado melhor!

quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Resenha: Cadernos de Poemas & Outras Arqueologias

Resenha do álbum "Cadernos de Poemas & Outras Arqueologias", conjunto de minhas canções criadas ao longo de 2022:

Nenhum poeta tem pudor com relação às suas experiências, isso já há muito se sabe. Por vezes, é preciso tomar distância, questão de asseio, talvez?, para lidar com alguns registros do coração, quão sujos de sangue & suor frios; lágrimas e outros fluidos corporais podem emergir. Aqui estão registradas as experiências da minha coragem, meu eu-lírico, ao longo do último ano: a morte do meu pai; a anunciação da minha segunda filha; meus dramas mais íntimos e inconfessáveis; as mais indizíveis dores; enfim, a solitude mais insondável — quase tudo o que se comunica é em vão — e alguma vitória sobre mim mesmo, a um custo pessoal que traz rubor à face de qualquer uma de suas testemunhas. Supondo que tal poeta caia na tentação de exprimir os seus mais sublimes estados de espírito; as suas visões & mirações de um futuro prometido; ou mesmo de cantar as minúcias de sua própria existência inaudita: isso tudo se dá ao largo da cotidiana multidão de pessoas pequenas com sua pequena curiosidade, suas covardia, vergonha e culpa. Ocorre que este poeta é um tentador, e essa definição ainda é uma tentativa... E, se por triste acaso do destino, aquela existência rara se permite ser vista por essa espécie de gente minúscula e retorcida, não é sem muito esforço que se supera o nojo que inspiram — mas, é bastante fácil passar por cima delas, saltando ou pisando, degraus que são diante de quem se eleva. Quem se equipara a esse poeta imodesto? Quem tem pulmões pra habitar suas alturas? Se ele intenta levar àqueles que ama a presença deste seu imenso espaço interior, quase sempre sente que lhes rouba o ar; lhes faz estremecer de frio; ouve dessas pessoas mesmo que “os feria mais que nunca!”. Correr precisamente esses perigos faz sangrar qualquer coração e, inevitavelmente, essa sangria respinga na poesia — quando ela não se resume a flanar por platitudes e amenidades da forma (ou mesmo da negação da forma... O “verso livre” é uma contradição e um crime contra o bom gosto!). Toda vez que a humanidade se afastou da tradição para trilhar novos caminhos e enfrentar os ressentidos que se regalam nas formas decadentes da cultura, houve solidão; ranger de dentes; tortura e gritos de desespero; foi chamada de “má”, proscrita para a escuridão da noite, quando a covardia dorme em sua cama quente e, então, a consciência de quem cria pôde lidar consigo mesma em paz. Ansiosa pelas novas auroras, que trarão o sol que ilumina tudo, que dá cor a tudo, ela sabe que também sua luz pode queimar: de que outro modo poderia brilhar? É preciso que essa nova humanidade arda em suas próprias chamas: como poderia criar sem antes destruir a si mesma, velho edifício fundado em preconceitos e equívocos? Se suas descobertas são as mais dolorosas; se o seu fardo é o mais pesado; se sua verdade é a mais singular e a sua força a mais desumana: somente assim serão abertas as largas avenidas pelas quais o futuro de suas filhas & canções poderão passar e, vingando seu esforço, honrar essa indizível dor, cumprir os desígnios desta vida soberana. Até lá, não “sigo”: faço a minha estrada, superando com deliciosa malícia mesmo a morte, pois, “somente onde há túmulos há ressurreições”. E não se enganem: não há prazer na dor, senão, apesar de toda dor — Ah, os mistérios do gozo que desembainha a espada e ergue o “sim!” à vida acima de tudo! A serviço da ciência de um futuro possível, um futuro tal onde a afirmação do amor baste como substância da vida enquanto experiência humana na Terra, e se algum dia a humanidade vindoura precisar elucidar “como chegamos até aqui, neste presente magnífico feito de beleza & força, alegria & liberdade?!”, ofereço os meus cadernos de poemas & outras arqueologias.

domingo, 13 de novembro de 2022

Só Há Racionalidade Econômica Quando Superados os Preconceitos Morais

1. Oikonomia — Quando desaparece o moralismo; quando as preocupações são desafetadas de toda moralina, as questões de fundo econômico vêm à tona: "Amor é só um nome bonito com o qual disfarçamos nosso egoísmo preocupado com o futuro dos nossos genes: amamos mais onde temos mais promessas de futuro para a reprodução dos códigos da vida que carregamos através de nós mesmos e nossas idiossincrasias — os códigos que somos. Importa mesmo é isso: a que casa será destinado o excedente do teu esforço laboral? A que casa será destinada a riqueza resultante do teu trabalho?"

2. Oikophobia — Tão logo as nuvens se dissipam e podemos vislumbrar a infinitude do céu azul; assim que o sedimento lamacento decanta e observamos as profundezas através da água mais cristalina, outras questões muito mais interessantes se desdobram: "Por que trabalhamos? Qual o regime de trabalho mais justo? O que é considerado riqueza? Como ela é produzida? Quem se apropria dela? Quais são as nossas necessidades? O que é supérfluo? Qual a forma da nossa casa? Quem deve habitá-la? Quem tem direito e razão pra responder estas questões mesmas?! E se a minha casa é diferente, se nela vivemos, eu & meus amores, de outro modo, seremos proscritos, estaremos excluídos da sociedade e dos benefícios resultantes do seu esforço coletivo?"

3. Por fim, o aspecto fundamental: "Se compararmos nossa maneira de viver com aquela da humanidade durante milhares de anos, constataremos que nós, homens de hoje, vivemos numa época muito imoral: o poder dos costumes enfraqueceu de uma forma surpreendente e o sentido moral sutilizou e se elevou de tal modo que podemos muito bem dizer que se volatilizou. É por isso que nós, homens tardios, tão dificilmente penetramos nas idéias fundamentais que presidiram a formação da moral e, se chegarmos a descobri-las, rejeitamos ainda em publicá-las, tanto nos parecem grosseiras! Tanto aparentam caluniar a moralidade! Veja-se, por exemplo, a proposição principal: a moralidade não é outra coisa (portanto, antes de tudo, nada mais) senão a obediência aos costumes, sejam eles quais forem; ora, os costumes são a maneira tradicional de agir e de avaliar. Em toda parte onde os costumes não mandam, não há moralidade; e quanto menos a vida é determinada pelos costumes, menor é o cerco da moralidade. O homem livre é imoral, porque em todas as coisas quer depender de si mesmo e não de uma tradição estabelecida: em todos os estados primitivos da humanidade, “mal” é sinônimo de “individual”, “livre”, “arbitrário”, “inabitual”, “imprevisto”, “imprevisível”. Nesses mesmos estados primitivos, sempre segundo a mesma avaliação: se uma ação é executada, não porque a tradição assim o exija, mas por outros motivos (por exemplo, por causa de sua utilidade individual) e mesmo pelas razões que outrora estabeleceram o costume, a ação é classificada como imoral e considerada como tal até mesmo por aquele que a executa: pois este não se inspirou na obediência para com a tradição. E o que é a tradição? Uma autoridade superior à qual se obedece, não porque ordene o útil, mas porque ordena. — Em que esse sentimento da tradição se distingue de um sentimento geral do medo? É o temor de uma inteligência superior que ordena, de um poder incompreensível e indefinido, de alguma coisa que é mais que pessoal — há superstição nesse temor. — Na origem, toda a educação e os cuidados do corpo, o casamento, a medicina, a agricultura, a guerra, a palavra e o silêncio, as relações entre os homens e as relações com os deuses, pertenciam ao domínio da moralidade: esta exigia que prescrições fossem observadas, sem pensar em si mesmo como indivíduo. Nos tempos primitivos, tudo dependia, portanto, do costume e aquele que quisesse se elevar acima dos costumes devia tornar-se legislador, curandeiro e algo como um semi-deus: isto é, deveria criar costumes — coisa espantosa e muito perigosa! — Qual é o homem mais moral? Em primeiro lugar, aquele que cumpre a lei com mais freqüência: por conseguinte, aquele que, semelhante ao brâmane, em toda a parte e em cada instante conserva a lei presente no espírito de tal maneira que inventa constantemente ocasiões de obedecer a essa lei. Em seguida, aquele que cumpre a lei também nos casos mais difíceis. O mais moral é aquele que mais sacrifica aos costumes; mas quais são os maiores sacrifícios? Respondendo a esta pergunta, chega-se a desenvolver várias morais distintas; contudo, a diferença essencial continua sendo aquela que separa a moralidade do cumprimento mais freqüente da moralidade do cumprimento mais difícil. Não nos enganemos acerca dos motivos dessa moral que exige como sinal de moralidade o cumprimento de um costume nos casos mais difíceis! A vitória sobre si próprio não é exigida por causa das conseqüências úteis que tem para o indivíduo, mas para que os costumes, a tradição apareçam como dominantes, apesar de todas as veleidades contrárias e todas as vantagens individuais: o indivíduo deve se sacrificar — assim o exige a moralidade dos costumes. Em compensação, esses moralistas que, semelhantes aos sucessores de Sócrates, recomendam ao indivíduo o domínio de si e a sobriedade, como suas vantagens mais específicas, como a chave mais pessoal de sua felicidade, esses moralistas constituem a exceção — e se vemos as coisas de outro modo é porque simplesmente fomos criados sob a influencia deles: todos seguem uma via nova que lhes vale a mais severa reprovação dos representantes da moralidade dos costumes — eles se excluem da comunidade, uma vez que são imorais, e são, na acepção mais profunda do termo, maus. Da mesma forma que um romano virtuoso de velha escola considerava como mau todo cristão que “aspirava, acima de tudo, à sua própria salvação”. — Em toda a parte onde existe comunidade e, por conseguinte, moralidade dos costumes, reina a idéia de que a punição pela violação dos costumes recai em primeiro lugar sobre a própria comunidade: esta pena é uma punição sobrenatural, cuja manifestação e limites são tão difíceis de captar para o espírito, que os analisa com um medo supersticioso. A comunidade pode obrigar o indivíduo a reparar, em relação a outro indivíduo ou à própria comunidade, o dano imediato que é a conseqüência de seu ato, pode igualmente exercer uma espécie de vingança sobre o indivíduo porque, por causa dele — como uma pretensa conseqüência de seu ato — as nuvens divinas e as explosões da cólera divina se acumularam sobre a comunidade — mas ela considera, no entanto, acima de tudo, a culpabilidade do indivíduo como culpabilidade própria dela e suporta sua punição como sua própria punição: “Os costumes estão relaxados”, assim geme a alma de cada um, “uma vez que tais atos se tornaram possíveis”. Toda ação individual, toda maneira de pensar individual fazem tremer; é totalmente impossível determinar o que os espíritos raros, escolhidos, originais tiveram de sofrer no curso dos tempos por serem assim sempre considerados como maus e perigosos, mais ainda, por se terem sempre eles próprios considerado assim. Sob o domínio da moralidade dos costumes, toda forma de originalidade tinha má consciência; o horizonte dos melhores tornou-se ainda mais sombrio do que deveria ter sido."

[F. Nietzsche, "Conceito da moralidade dos costumes", "Aurora", nº 9,]

quarta-feira, 28 de setembro de 2022

Minha Coragem, Meu Eu-Lírico

1. Ainda não é chegada a hora de contar a mim mesmo a história daquilo que vivi neste ano, posto que ele ainda não acabou, portanto, conto a mim mesmo o meu sonho de hoje. 

2. Sonhei que estávamos, eu e Letícia, a caminho de um clube, era fim de semana, as ruas estavam vazias e o clube deveria estar cheio. Fomos de metrô e ao sair da estação eu acabei tomando um caminho diferente dela, soltei de sua mão e fui na frente, caminhando por algum lugar onírico que, refletindo agora, se assemelha um pouco com os arredores do parque de Águas Claras, quando, então, eu me apercebo já de sunga e sem sinal dela por perto. Nesse momento, eu levo à mão ao bolso na intenção de pegar o celular para ligar pra ela, mas, “lembro” que já estava de sunga e deveria ter deixado a roupa na bolsa dela. Ainda sonhando, “acordo” e desperto ela ao meu lado na cama para perguntar onde ela estava! Ela me responde: “É só um sonho, eu estou onde você quiser que eu esteja!”. “Ah é!” — penso eu, e retomo a narrativa principal. Pois bem: se fomos de metrô e ela está grávida e vai a passos mais lentos, me basta apenas refazer o caminho que fiz até aqui que nós nos encontraremos. E não é que deu certo? Eu a encontro caminhando lentamente numa calçada, com apenas um pé de calçado, mancando, mas, tranquila. O momento em que meus olhos passam a vista sobre ela é o momento em que a sua curvilínea figura me enternece; eu pego o outro calçado dela que estava pela rua e a ajudo a coloca-lo de volta, assim continuamos nosso caminho de mãos dadas até o clube, onde eu espero nadar! 

3. Por fim, desperto suavemente emocionado do sonho e me viro na cama para beijá-la e à sua barriga onde Athena nada loucamente no seu líquido; beijo também seu cangote e ela desperta me dizendo que minha respiração “parecia o mar” no seu ouvido. Essa figura poética me cativou! 

4. Minha coragem, meu "eu-lírico", me leva além: ela é tanto inocente desatenção a alguns perigos quanto consciente desprezo por outros. Ela me faz acessar muitos lugares: montada sobre minhas pernas, cavalgando sobre meus ombros, minha coragem me leva aonde eu quero ir. Ela me abre muitas portas e também bate muitas outras ao sair. “Se eu não temo nem a mim mesmo, como poderia haver algo no mundo que eu tema?” e lá se vão minha coragem de mãos dadas com minha curiosidade vagarem pela vida. Minha coragem é minha virtude e toda virtude tende à estupidez... “Minha coragem” é minha maior loucura. 

5. Todo símbolo é um devaneio do espírito... Quem interpreta símbolos “do so at their peril” como diria Wilde. Um dia fui obcecado com a ideia da interpretação dos símbolos, “o que poderia haver de tão “profundo” ou “secreto” em alguns?”; a primeira e única psicóloga com a qual lidei como paciente (impacientemente... como sempre me pareceu inoportuno e pueril exercício da imaginação toda a psicologia!) era junguiana... Hoje acho tudo isso uma grande bobagem, um misticismo refinado com verniz científico. Interpretar as pessoas é até muito fácil: a imensa maioria é muito óbvia na vulgaridade da sua existência; algumas são cobertas de camadas e máscaras, mas não deixam de ser previsíveis e consigo contar sua história, inclusive, o seu futuro, apenas acessando alguns dados básicos de sua vida. Mais difícil sempre foi interpretar o mundo, como são construídas as relações que produzem a vida material; todos os elementos objetivos e subjetivos, históricos e geográficos, políticos e fisiológicos que influem naquelas relações e como essas relações podem mudar e fazer surgir novas formas da cultura. Acabei de descrever a ciência que leciono? Que bobagem! Por fim, nada se compara às “questões primeiras e últimas” nas quais se detém o filósofo do futuro: sigo no caminho trilhado por ele. E me detenho apenas onde ainda há promessa de algum futuro. Como me ensinou Zaratustra: “onde não for possível amar deve-se passar ao largo!”.

terça-feira, 21 de junho de 2022

Resenha - "Sete Copas ou Espíritos Livres" (2020)

 Posto aqui esta resenha nunca antes publicada do meu álbum "Sete Copas ou Espíritos Livres" (2020). 

--------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- 

Este é meu 26º álbum em 15 anos de música. Enquanto o anterior, “História da Música”, foi maturado ao longo de 10 meses em 2019, “Sete Copas...” nasceu entre dezembro de 2019 e fevereiro de 2020. Brotou do entorpecimento do meu espírito ao longo das jornadas vividas nestas últimas férias. Surgido da necessidade de falar — calar produz mau caráter, já ensinava o alemão — de questões urgentes, latentes em mim. É o primeiro álbum de uma nova fase de minha vida e retoma sonoridades acústicas que há muitos anos não apareciam nas minhas músicas. Inclusive, com um novo instrumento, o bandolim, que há muito eu pensava em adquirir para meu estúdio. Eu estava cansado da guitarra. Eu desprezo solos de guitarra. O “rock”, o que é? Essa “máscara” atrás da qual se escondem muitos dos canalhas hodiernos, muitos dos fascistas usam da sua virulência estética como símbolo de si mesmos e de sua crueldade. Portanto, que tenho eu a ver com o rock? Uso-o desde sempre para atacar aqueles que nele se escondem! Também neste álbum procedo desta forma em 3 ou 4 canções. Logo na sua primeira metade, que é já para afastar o ouvinte que eu desprezo. Esconder o desprezo: assim procedem os bons cristãos, lhes parece, como dizem hoje em dia, “belo e moral”. Que tenho eu com o cristianismo de qualquer espécie?! O meu ateísmo é instintivo e me surgiu ainda criança, antes dos 5 anos de idade, talvez. Que tenho eu a ver com estas moscas volantes? Meu faro afiado permite apenas que sinta nojo dessa gente, meu instinto para a saúde me impede de sentir “compaixão”, eu não “sofro com eles”, e se às vezes me falta sorte, eu sofro por eles... Os melhores dentre os que se dizem cristãos, aqueles a quem Nietzsche chamava de “cristãos puros”, uns poucos dos que são meus amigos mesmo, meu instinto psicológico perscruta sua intimidade, contudo, prefiro desviar o olhar. Sei honrar meus amigos e guardo recato das contradições que, ao fim e ao cabo, fazem parte da humanidade, não são privilégios dos cristãos. Quem for do meu tipo não precisará nem de paciência nem de teste de força alguma para alcançar a segunda metade do álbum, na qual como a abelha que produziu muito mel, distribuo da minha abundância e riqueza de espírito. Como sempre, escrevo e canto para mim e para os que me são semelhantes, os raros. Nunca acreditei que aquilo que sai da minha boca e dos meus instrumentos possa ser acolhido por qualquer ouvido. É um privilégio me escutar. É uma dádiva para qualquer um dos meus amigos me conhecer. Eu sou feito de ouro e sei retribuir todos os que se acercam de mim nesta vida, todos os que me oferecem sua companhia nas diversas sendas trilhadas, nas diversas jornadas e batalhas, cuja duração varia entre alguns meses ou anos, seja no trabalho ou nas dimensões privadas da minha vida. É a estas pessoas, este círculo bendito de privilegiados, a quem dedico este álbum. Ouçam-me amigos: sois espíritos livres como eu? Sois capazes de atravessar este presente horrível, esta noite escura, estas trevas? Pois bem: logo ali na frente uma nova aurora se anuncia. Esta é a lei universal. Ainda aguardo por ecos, estou farto de elogios, sei fazê-los a mim mesmo. Onde estão, amigos? Parece-me que ainda ontem “perdi” um amigo. Será possível que se perca aquilo que nunca tivemos? Não acredito nisso. Em verdade, vos digo: o tempo é um filtro que seleciona os melhores. Longe de mim todos os que claudicam com suas necessidades, todos os lamuriosos viciados que se perderam em seu egoísmo e covardia! E se o inverno vem me visitar, eu não o desonro, mas me esquivo de sua fria inveja! Quero que se me acerquem quem for melhor que eu para que eu possa os imitar e aprender as suas habilidades de espírito. Quero aprender a amar mais profundamente, a odiar mais profundamente, a ler mais profundamente, a escrever poesias mais belas, a ser mais belo eu mesmo, o mundo já está cheio de coisas horríveis, a cantar melhor, a compor melodias mais delicadas e belas, a ser mais forte e mais saudável. Com este voto finalizo este pródromo, amigos: que façamos da vida uma experiência de beleza e força, saúde e coragem!

 

Juliano Berko, fevereiro de 2020.

Resenha - "A História da Música de Juliano Berko" (2019)

 Posto aqui esta resenha nunca antes publicada do meu álbum de 30 anos de vida/15 anos de música: "A História da Música de Juliano Berko" (2019). 

--------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Uma árvore jovem, mas que, contudo, já atingiu o ápice da altura da sua espécie. Uma imponente Sumaúma, cujas virtudes — e mesmo vícios — não se medem com as demais árvores ao seu redor: sobre elas projeta sua sombra. Representa para elas o terror daquilo que bloqueia a luz. Um grande mal-entendido, como sabem aqueles com altura o suficiente para o conhecimento. Mal sabem esses pequenos arbustos ingratos que, a bem da verdade, ela as protege da virulenta radiação do sol de um grande meio-dia. Altiva, esta Sumaúma toma a ingratidão e a desconfiança das plantas que grassam ao seu redor como a parte que lhe cabe. E ainda generosa: permite que mesmo aves de rapina, Uiraçu (ou Harpia, para os gregos), façam nela sua morada; pequenas orquídeas proliferem em seus galhos, nutrindo-se de sua abundância — alegra-se de sua força e coragem, de suas cores e aromas. As suas raízes são profundas, lançando-se em direção à Terra com sede de saber, libido sciendi, sensual e sagaz; entre elas se entrelaçam víboras, Sucuris (ou Hydra, para os antigos) e outros monstros que rastejam na escuridão da floresta. Dobra-se em altura com o tronco e a copa, ansiando pelo céu do imaculado conhecimento, pura e plena daquilo que, para tal, é condição fundamental: o amor.

Aqui se percebe como estas contradições, que se expressam livremente na vida, se constituem metáforas de seu próprio corpo, a sua própria constituição enquanto ser vivo prescinde do tacanho moralismo que as renega e disfarça. Isso sabe o que se tornou mestre de si mesmo; isso aprende o que é o seu aprendiz. Aquele é Zaratustra, com sua águia e serpente, raízes e galhos; este é o Jovem na montanha, com seu cansaço e inveja, autocomiseração e autopenitência.

A obra que aqui se apresenta nada mais é do que o fruto do diálogo entre estas personagens ao longo das últimas três estações ocorridos em meu espírito que, refletindo sobre minha vida e as questões fundamentais que me são familiares, sobre a metade da minha existência dedicada à música — venho me tornando compositor de canções desde os 14 anos — e sentindo a necessidade de contar a minha história e a história da minha música — que, para todos os efeitos, é a grande tarefa da minha vida, aquilo que me é único e indissociável. Para tal, tomo como parte estruturante da referida obra o capítulo “Da Árvore na Montanha”, do Zaratustra de Nietzsche, transformado em versos e musicado, dividido em quatro partes. Ora toma protagonismo o mestre, ora o aprendiz. O mestre, já maduro, usa um tom de voz mais baixo, uma oitava mais baixa ao cantar. O aprendiz, ainda verde, usa um tom de voz mais alto, põe-se a gritar uma oitava mais alta ao cantar.

Esta obra foi pensada para representar em cada canção um ou mais estilos e ritmos musicais que constituíram a minha formação: o proto-punk rock e power pop de minha origem e fundação; o reggae, reggaeton, o funk e os demais ritmos de origem africana e latina; o jazz, blues e bossa-nova de escalas pentatônicas e rítmica mais complexas; o baião, a balada, o eletrônico, o folk e o indie: todos presentes, mais de um em alguns casos, em cada canção. Vejam meus amigos: eu já sei quem sou e conquistei o meu espaço. Com isso não quero dizer que disputo consciências nem que estou à venda; nem mesmo almejo ser ouvido por quaisquer ouvidos: não sou um músico miserável o bastante para tal. Sei que o deserto é longo, mas eu mesmo me constituí num abundante oásis: sou o meu próprio mecenas, sou o meu próprio ouvinte! Torno-me um animal mais raro a cada estação... Hoje mesmo meus melhores amigos e ouvintes estão mais distantes de mim: também o encontro com eles se torna evento menos frequente, pois, alguns dos que me acompanharam até aqui já não me prometem grande futuro e nos estranhamos... O deserto, portanto, tornou-se ainda maior. A Amazônia mesmo arde em chamas, fazendo do planalto central um anteprojeto árido do futuro da humanidade industrial baseada na exportação de commodities. De modo que se faz mister celebrar com este álbum conceitual os meus 30 anos de vida, 15 anos de música, de profunda alegria e de criação de sentidos e valores vivos — a despeito de toda a mendacidade e covardia da nossa cultura decadente, refém do ressentimento mais venenoso! Para longe com ele! Sobre tal é necessário até mesmo me impor silêncio, uma vez que algumas questões são expostas nas canções de maneira bastante loquaz — mais não é preciso dizer.

Nesta hora de música que apresento canto, danço, rio, choro e louvo a vida para satisfazer os imperativos da existência: está aqui registrada, então, esta minha história! Estão aqui gravadas estas minhas verdades! Carpe diem, amigos! Cave musicam, irmãos!

1.      The Tree On The Hill

 É a canção estruturante do álbum, dividida em quatro partes é o capítulo do “Assim Falou Zaratustra” de Nietzsche musicado a partir do cotejo entre algumas traduções em inglês. Algumas passagens são versificações literais compostos a partir do texto, outras são criações poéticas minhas a partir das imagens contidas no texto, em especial na parte IV. A divisão da canção em quatro partes produz 13 faixas, como a trilogia “Infinito Outubro” (2007), “Livro Livre” (2008) e “Coisa Pra Dizer” (2008); caso considere-se a canção como uma única peça, produz 10 faixas como a quase totalidade das obras após esse período inicial. Aqui, mostro a importância do folk dylanesco, da balada, do rock industrial, como o entendo: Killing Joke; e do rock progressivo na minha formação. Foi a segunda canção composta para o projeto, em idos de março. Ela abre o álbum com um arpejo acústico, em outras passagens utilizo o efeito de “slide” na guitarra sobre o mesmo arpejo, e fecha com uma belíssima balada na qual está presente um jogo de vozes ‘mais baixa+mais alta’, símbolo do esforço de unidade contra as pressões dissociativas que todos enfrentamos em nossa psique, a unidade entre Jovem e Zaratustra, mestre e aprendiz; tronco, copa e raiz.

 2.      Mare Tranquillitatis

 Foi uma tentativa de recriar o primeiro poema que escrevi, “A Lua”, escrito por volta de 2001 ou 2002. Lembro que havia me alegrado tanto com aqueles versos que cheguei a mostrar para algum amigo, colega de classe que me fez a cortesia de mostrar para a nossa professora de língua portuguesa. Eu não tenho esse poema guardado e apenas pude reter uma ou outra imagem ali evocada em minha memória, como o “farol” que guia os apaixonados... Certa noite eu esperava um ônibus sob um imenso luar que tomou meu espírito de nostalgia daquele poema e escrevi os versos todos da música logo que cheguei em casa. A música foi composta com apenas três acordes (C, F, Am), para rememorar o esforço juvenil de criação de um punk rock clássico, contudo, o arranjo é tão diverso que não parece assim tão simples. Por fim, adaptei o arranjo para o ritmo de um funk tradicional, “Miami beat”, ou coisa que o valha, o mesmo que utilizei em “Vivat Comaedia!” (“Endemônio”, 2017) que é a canção que fiz favorita da Aurora e havia prometido que faria outra com base no mesmo ritmo. Foi a primeira canção criada para o álbum, por volta de fevereiro. Daqui em diante, todas as canções seguem uma ordem cronológica de criação ao longo de 2019. Por fim, o seu título é o nome latino de uma região da face visível da lua.

 3.      Sunlight Paranoá

 Esta canção surgiu a partir de seu título que é um trocadilho com uma canção do Lobão, “Moonlight Paranoia”; quis fazer algo que a rememorasse, mas que fosse sua antítese em ética e estética, a antítese dessa hegemonia conservadora carcomida, no rock e na política, sob a qual ora vivemos. Os versos foram desenvolvidos a partir de um texto que publiquei n’O Verso Lá No Verso, “O aprendizado do mar”. É um reggaeton, algo que surgiu recentemente em meus ouvidos e que já havia me utilizado antes em “Alegria” (“Endemônio”, 2017). Me agrado da sutileza dos arranjos e do suave balanço deste ritmo latino. É uma ótima forma de mostrar o meu desprezo pela ética e estética do roqueiro classe-média latino-americano da periferia do mundo, afetado de superioridade diante dos povos tradicionais da América. Um autodesprezo, inclusive, e um apreço ao que nossa cultura produziu de original e diverso. Só é possível amar o diferente. Este afeto se repetirá mais adiante no álbum.

 4.      O Alquimista

 É uma das poucas canções que escrevi de uma só vez. Deu-se a partir da reflexão sobre a filosofia Nietzscheana da transvaloração dos valores nutrida das leituras do “Além do Bem e do Mal” e d’O “Anticristo”. Como faço há alguns anos, esta é a música do álbum cujo ritmo é divido em três tempos. Evoca belas imagens em seus versos e é uma canção poderosa em que rendo homenagens ao blues como forte influência indireta sobre minha obra.

 5.      Atrás Do Trio Elétrico (Só Não Vai Quem Já Morreu)

 Esta canção desenvolveu-se a partir do seu título, que me ocorreu no carnaval deste ano. Originalmente, queria criar um samba ou marcha carnavalesca, o que não se desenvolveu ao longo do processo criativo. Descobri uma canção do Caetano Veloso com o mesmo título, o que me levou a utilizar o estratagema dos parênteses para a diferenciação. É a mais política canção do álbum, por isso a mais afetada pela profunda degeneração cultural e moral que se experimenta a partir do ar que se respira hoje no Brasil. Nela, faço referência ao antológico samba-enredo apresentado pela Mangueira no carnaval deste ano e rendo homenagem ao pós-punk e ao hardcore, este como influência indireta, aquele como influência direta na minha constituição artística. É introduzida por um solo de bateria.

 6.      The Wonderer

 É a segunda canção em inglês do álbum criada, basicamente, a partir de aforismos de Nietzsche em inglês com o refrão baseado num jogo de palavras que causa uma suave aliteração. A música foi pensada para recriar um ritmo de funk/funk rock, que me utilizei por vezes, como outra de minhas influências colaterais. O título é um neologismo criado a partir de “Wanderer” (“Andarilho”) e “Wonder” (Maravilha). Seria algo como o “criador de maravilhas”. Há uma versão em português cujo título é “O Andarilhoso”. Possui uma citação de Heráclito que pesquei no twitter e com a qual muito me identifiquei: “One person is ten thousand to me if he is the best” (“Uma pessoa são dez mil para mim se ela é a melhor”). Possui também um magnífico solo de guitarra+baixo.  

 7.      A Viver Se Aprende Vivendo

 É uma das minhas favoritas do álbum, criada a partir de um riff que havia criado ainda em 2018 e que veio a se tornar a base do refrão. Portanto, foi criada a partir do segundo refrão. As estrofes e o primeiro refrão vieram depois. A base musical das estrofes foi criada para lembrar um reggae, ritmo o qual não componho tanto quanto ouço — e ouço, basicamente, a partir do gênio Bob Marley a quem presto, aqui, minhas singelas homenagens. Possui estrofes longas com longas linhas melódicas descendentes. Aqui canta o aprendiz num rito de passagem à sua maestria.

 8.      XXX

 É um rock jazzeado, originalmente pensado para ser uma de minhas “bossas”, tal “Das Tripas, Coração” (“Cave Musicam”, 2018), que aprendi a compor ouvindo os tropicalistas e Tom Jobim, que muito me agrada. Tentei fazer uma espécie, vá lá, de “walking bass”. O título é a minha idade corrente em algarismos romanos e alude à maturidade que atingi a partir das experiências destes últimos pares de anos. Para o arranjo, me utilizo do estratagema alcunhado de “sinfonia de guitarras” que desenvolvi primeiramente em “Lívido” (2009) e me utilizo vez ou outra em alguma canção desde então. É das poucas canções do álbum que passeia por todas as notas, de dó (em escala mais baixa) a dó (em escala mais alta), utilizando de acordes pouco convencionais, como diminutos e inversões. Musicalmente, é a mais rica do álbum.

 9.      Cornucópia

 Foi criada para ser um baião. Inicialmente, o riff da estrofe, origem da canção, foi criado em sol (G), porém, pensando em gravá-la com a participação de uma viola caipira (o que findou não ocorrendo até então), mudei para mi (E), para criar ressonância maior com o corpo acústico do instrumento. A letra é metalinguística e fala do meu instinto criativo, da minha capacidade de criar canções e da importância de tal virtude para mim. Até o primeiro refrão a canção é mormente acústica, com violões fazendo a sua base até que ele cria uma explosão sonora com a participação da guitarra, baixo, bateria e teclados que a elevam a um patamar de um “baioque” supersônico. Ao fim da canção há um solo de guitarra invertido, finalizando a canção de modo psicodélico. É mais uma das homenagens que rendo à rica musicalidade brasileira, especialmente a nordestina, de que mais gosto. Por longos anos fui incapaz de ouvir samba-canção e bossa-nova. O baião sempre me foi mais acessível. Cito como referências: Tom Zé, Alceu Valença e Luiz Gonzaga. Por fim, cornucópia é um símbolo de abundância e fertilidade, motivo de muitos quadros de natureza morta dentre os quais um que eu via no apartamento da minha vó quando criança.

 10.  Torre do Silêncio

 Foi criada para ser uma música inteiramente composta de sons eletrônicos (bateria e teclados), lembrando o arranjo hegemônico presente na obra “Indizível” (2012). O projeto do audacity desta canção, inclusive, tem origem no projeto de “Benefício da Dúvida” (“Indizível”, 2012). No estribilho anterior ao refrão me utilizo de um ritmo dividido em quatro tempos de sete micro-tempos, já utilizado no fim de “Liebesliede” (“Endemônio”, 2017). Por fim, acabei colocando guitarras nos momentos epifânicos da canção, quando subo o tom de ré (D) para mi (E). Assim, faço referência aos artistas indies e de música eletrônica que foram influências diretas sobre mim, como MGMT e Chemical Brothers. A letra é baseada na história do Zaratustra histórico, que teria vivido em algum lugar da Pérsia antiga. Isso se mostra nos mitos sobre seu nascimento, sobre o abandono de sua pátria na qual havia um lago, etc. Tomo como símbolo para mim mesmo e meu “abandono” por longos anos do lago da minha pátria, o Paranoá, para onde retornei apenas aos 18 anos. É uma canção que representa uma dietética de como quero viver a vida e mesmo de como quero morrer: Torre do silêncio é o espaço dedicado ao depósito dos restos mortais dos zoroastrianos, entregues ao sol e às aves de rapina, até tornarem-se pó que é, em definitivo, deitado no fundo de mares e lagos. Na epifania, me utilizo de falsete para atingir uma nota mais alta, signo do esforço de elevação, exercício que constantemente realizo em vida, como quero ser lembrado na morte.

Estão aqui registradas estas minhas verdades! Carpe diem, amigos! Cave musicam, irmãos! 

[Juliano Berko, Outubro de 2019]

domingo, 19 de junho de 2022

7 Historietas de Amores Goianos

1. Ela tinha 14 anos e era apaixonada por um rapaz da sua cidade no interior de Goiás. O rapaz era boa pessoa, de família modesta em posses. Ela, de família renomada na cidade, com muitas posses e sentido para a acumulação.... Certo dia, o rapaz passa na rua e ela acena para ele da janela, ocasião em que é agredida por sua mãe até perfurar-lhe o intestino. É levada para Goiânia às pressas. 3 anos depois ela se casa com outro rapaz vindo do Rio de Janeiro, estabelecendo-se em Brasília, então recém-inaugurada. Esta união é aceita por ambas as famílias, contudo, a antiga paixão permanece latente em seu coração para sempre. 

2. Ela o conheceu quando visitava sua irmã recém-casada na recém-inaugurada Brasília. Ela folheava uma revista "Cláudia" que deliberadamente deixou cair da janela do bloco do cunhado enquanto ele passava. Ele recolheu a revista e aguardou por ela que, ao descer para resgatar a mesma, travou o contato inicial que fundou uma linhagem inteira de filhos, netos e bisnetos. 14 anos depois ela se tornaria viúva em um acidente de carro do qual demorou meses para se recuperar (ela mordeu uma parte da língua — curiosidade: este órgão é capaz de se regenerar!). A partir de então, aproveita a vida livre para se enamorar de quem lhe aprouvesse, longe do controle dos pais e do marido, por longos 10 anos.

3. 10 anos após o acidente automobilístico que lhe fez viúva, ela, goiana radicada em Brasília, é quase atropelada por um senhor, 22 anos mais velho, quando saía da garagem do bloco dele na superquadra em que ambos moravam na asa sul. A partir de então, passou a receber o seu cortejo nos passeios da quadra. A ocasião inusitada serviu para que travassem o contato inicial da união, profundamente apaixonada da parte dele, que perdura por mais 25 anos. Ela cuida dele até a sua morte em idade avançada. Ele, que nunca teve filhos, toma suas enteadas por filhas, os filhos delas como seus netos, de forma genuinamente afetuosa e dedicada. Ele, do sertão cearense, deixou um legado de hábitos da cultura nordestina, lembranças de uma humanidade forjada no Brasil do Estado novo, contatos com ambientes requintados e com um determinado círculo da elite da burocracia e da política em Brasília.

4. Eles se enamoraram ainda na tenra adolescência, na Pirenópolis de 1972. A breve paixão, por capricho por destino, cedeu espaço para que ambos fossem viver novas relações que resultaram em seus casamentos, fundando cada qual suas próprias famílias. Ela confessou sentir, já casada, a palpitação, o coração-na-boca típico das grandes paixões mal resolvidas, quando cruzava com ele nas ruas e talvez se perguntasse secretamente se alguém seria capaz de perceber o seu rubor que lhe denunciava. Em 2020, em pleno isolamento imposto pela pandemia, ambos já separados dos seus respectivos cônjuges, retomaram o contato que reacendeu a paixão de anos atrás. Estão agora casados e rejuvenescidos em décadas pela magia do amor.

5. Eles tinham a mesma idade, cerca de 14 anos. Foram namorados na Goiás dos anos 1970. Um dia ela foge com outro rapaz aos 15 anos, aventura típica da época em que as moças de família desonravam o nome dela acaso se entregassem às paixões antes do sagrado matrimônio. Ele finda namorando e casando com aquela que era prima de sua primeira namorada, alguns anos mais nova, alguns anos mais tarde, em 1986. Têm dois filhos e se separam. Os filhos convivem com o pai esporadicamente na infância e depois passam praticamente 20 anos longe do pai, retomando o contato quando ele já está próximo do leito de morte, para honrar tardiamente esta estória dramática.

6. Ela nunca se casou. Provavelmente, faleceu sem nunca provar do fruto oferecido pela serpente que habita a árvore do conhecimento... Fora, de certa forma, escolhida pela sua família para ser a senhorita que cuidaria dos sobrinhos, da casa e dos pais até a morte. Contudo, neste ínterim, nos caminhos sinuosos apresentados pela vida, ela conhece uma moça vinda do Rio de Janeiro nos anos 1970 e que se estabelece ali na mesma cidade de Goiás, num sobrado com bela vista para a monumental Serra Dourada. Elas travam uma amizade forjada em viagens para pescarias e acampamentos à beira dos rios largos do oeste goiano — além de cigarros, muitos maços de cigarro! Aquela amizade certamente foi seu amor secreto por longos anos, até que a morte as levou para viver suas aventuras no paraíso.

7. Eles se conheceram na afamada rua da lama. Ela, menina sem origem exatamente conhecida, mestiça filha da miséria dos rincões do Brasil, é o brinquedo favorito daquele rapaz, filho de família abastada da cidade. Logo, a ardência dos seus encontros dá origem a uma criança, que cresce ali na mesma casa em que a mãe (sobre)vivia... A irmã mais velha dele descobre a existência da tal criança e a resgata, permanecendo sob seus cuidados. Alguns meses mais tarde, mais uma criança vem ao mundo fruto daquela paixão impossível. Na terceira gestação, a família dele resolve intervir para arranjar seu casamento com aquela moça, abençoando a união de ambos. Fundam uma família de gente bela e briosa. Possuíam uma fazenda de belíssima paisagem no oeste goiano, onde os filhos, netos, sobrinhos e sobrinhos netos aprenderam a observar maravilhados as infinitas belezas do cerrado.. Ela cuida dele ainda hoje, quando já claudica em sua saúde em idade avançada.

sexta-feira, 6 de maio de 2022

Uma Vez É Nenhuma Vez

1. Aves de rapina — Mais de uma vez na vida conheci mulheres na forma de aves de rapina que, com suas garras embebidas no veneno do ressentimento aos homens, quiseram arrancar minhas tripas fora e perscrutrar minhas entranhas; testar os limites dos meus instintos; tatear os contornos das minhas virtudes; avaliar a consistência da músculatura da minha vontade, como se eu fosse um concupiscente e vulgar bovino, bufando diante do tecido vermelho. Tão logo descubro essa sua suposição sobre mim, estraga daí por diante o meu gosto... Em verdade vos digo: são animais de singular beleza, rara delicadeza e a sua existência mesma é fator de enternecimento do espírito, mesmo e em especial, daqueles mais brutos. Essas mulheres espiritualizadas, de luminoso intelecto, sempre me cativaram. Contudo, como paulatinamente manifestam a intenção de me ensinar a sua moral, me disciplinar na sua dietética de hábitos e gestos, me converter a partir do seu evangelho — a sua boa-nova, uma nova culpa, adornam com as mais belas imagens e palavras — não tarda em chegar a hora em que me cansam e eventualmente me enojam. Querem me arrebatar para com isso comprovar suas teses, como se eu fosse um ambulante objeto de estudo, um homem ordinário afoito por me satisfazer! Mal sabem que me regalo em tudo aquilo que genuinamente me atrai — o que não vem ao caso. 

2. Einmal ist keinmal — Deveria ser tomado como regra geral a realização de qualquer experiência mais de uma vez: apenas assim (ou nem mesmo assim!) afastamos a dúvida sobre o caráter do primeiro evento. Numa fórmula matemática: tudo 'n' vezes. Casar, no mínimo, duas vezes: descobrir com a segunda experiência se demos sorte ou azar com a primeira! 

3. Em favor de Zeus — O meu desejo nunca me envergonha: essa é a recompensa que recebo da vida após anos de intensa disciplina do espírito. As canções que ouço, comidas que degusto, toda espécie de prazer que arranco do úbere da existência: Se ouço "Still crazy after all these years", "Walking with gods" não perde o sentido e o gosto para mim; quando me alimento de picanha, o camarão não se sente desprezado; quando aprecio um espetacular pôr-do-sol, como o de hoje sobre o horizonte da Ceilândia, a aurora que se sucede não se enciúma — tão magnífica é a máquina de produção da minha vontade, que sempre mais aflora do meu peito, transborda dos meus olhos. O mesmo deveria ocorrer com as mulheres que me atraem na sucessiva sequência de parceiras ao longo da vida. Porém, nada mais vergonhoso na humanidade que sua neurose sobre as diversas formas de expressão da sexualidade, degeneração esta que se manifesta tanto no fervor religioso que tortura um homossexual cumprindo a expectativa de gênero, casado com esposa e filhos, quanto no jovem casal liberal que frequenta boates de swing abobalhados pela ousada novidade, enriquecendo, com seu dinheiro e a divulgação de seus corpos, o grosseiro cafetão/traficante dono do local. Sejamos livres, pois, para fruir dos muitos prazeres da vida — sem nada dever nem se envergonhar diante de ninguém! Lætitia, meus amigos, como condição sine qua non da existência! 

4. Contra toda a metafísica — Deus está morto, mas, seu fantasma ainda ronda. A estátua foi derrubada: contudo, ficará para sempre marcada na rocha a sua sombra. Com essas imagens aquele grande alemão já havia descrito o fenômeno que intento expôr: a moralidade religiosa de caráter laico. O sentimento religioso sempre foi raro e a história de todas as religiões narram nada mais do que o roteiro de peças teatrais nas quais as personagens encenam aquele sentimento, muitas vezes nunca tendo o experimentado de fato. Ainda hoje na Terra há muita empedernida moralidade das antigas religiões travestida de belas virtudes modernas. Os moralistas laicos da modernidade padecem de uma má-interpretação do corpo e dos instintos, e seus pregadores querem acorrentar à humanidade às suas próprias correntes. Deles, mantenho estratégica distância. Pra longe de mim, gente venenosa! Prefiro o meu quarto frio do que aquecer minha alma no fogo da sua fogueira! Mesmo assim, para meu secreto júbilo, resultado de profundo auto-conhecimento: em mim se manifesta genuinamente o sentimento religioso, o religare, de forma laica, materalista, com lastro na minha apreciação da história da humanidade e na minha identificação com o seus aspectos universais. Não compreendo as mentes dos guetos. Nem acredito em nada: tudo aquilo que existe me compele em sua direção para avaliá-lo, creia eu naquilo ou não. No mais, fantasminhas moralistas ("deuses") não existem.