domingo, 13 de novembro de 2022

Só Há Racionalidade Econômica Quando Superados os Preconceitos Morais

1. Oikonomia — Quando desaparece o moralismo; quando as preocupações são desafetadas de toda moralina, as questões de fundo econômico vêm à tona: "Amor é só um nome bonito com o qual disfarçamos nosso egoísmo preocupado com o futuro dos nossos genes: amamos mais onde temos mais promessas de futuro para a reprodução dos códigos da vida que carregamos através de nós mesmos e nossas idiossincrasias — os códigos que somos. Importa mesmo é isso: a que casa será destinado o excedente do teu esforço laboral? A que casa será destinada a riqueza resultante do teu trabalho?"

2. Oikophobia — Tão logo as nuvens se dissipam e podemos vislumbrar a infinitude do céu azul; assim que o sedimento lamacento decanta e observamos as profundezas através da água mais cristalina, outras questões muito mais interessantes se desdobram: "Por que trabalhamos? Qual o regime de trabalho mais justo? O que é considerado riqueza? Como ela é produzida? Quem se apropria dela? Quais são as nossas necessidades? O que é supérfluo? Qual a forma da nossa casa? Quem deve habitá-la? Quem tem direito e razão pra responder estas questões mesmas?! E se a minha casa é diferente, se nela vivemos, eu & meus amores, de outro modo, seremos proscritos, estaremos excluídos da sociedade e dos benefícios resultantes do seu esforço coletivo?"

3. Por fim, o aspecto fundamental: "Se compararmos nossa maneira de viver com aquela da humanidade durante milhares de anos, constataremos que nós, homens de hoje, vivemos numa época muito imoral: o poder dos costumes enfraqueceu de uma forma surpreendente e o sentido moral sutilizou e se elevou de tal modo que podemos muito bem dizer que se volatilizou. É por isso que nós, homens tardios, tão dificilmente penetramos nas idéias fundamentais que presidiram a formação da moral e, se chegarmos a descobri-las, rejeitamos ainda em publicá-las, tanto nos parecem grosseiras! Tanto aparentam caluniar a moralidade! Veja-se, por exemplo, a proposição principal: a moralidade não é outra coisa (portanto, antes de tudo, nada mais) senão a obediência aos costumes, sejam eles quais forem; ora, os costumes são a maneira tradicional de agir e de avaliar. Em toda parte onde os costumes não mandam, não há moralidade; e quanto menos a vida é determinada pelos costumes, menor é o cerco da moralidade. O homem livre é imoral, porque em todas as coisas quer depender de si mesmo e não de uma tradição estabelecida: em todos os estados primitivos da humanidade, “mal” é sinônimo de “individual”, “livre”, “arbitrário”, “inabitual”, “imprevisto”, “imprevisível”. Nesses mesmos estados primitivos, sempre segundo a mesma avaliação: se uma ação é executada, não porque a tradição assim o exija, mas por outros motivos (por exemplo, por causa de sua utilidade individual) e mesmo pelas razões que outrora estabeleceram o costume, a ação é classificada como imoral e considerada como tal até mesmo por aquele que a executa: pois este não se inspirou na obediência para com a tradição. E o que é a tradição? Uma autoridade superior à qual se obedece, não porque ordene o útil, mas porque ordena. — Em que esse sentimento da tradição se distingue de um sentimento geral do medo? É o temor de uma inteligência superior que ordena, de um poder incompreensível e indefinido, de alguma coisa que é mais que pessoal — há superstição nesse temor. — Na origem, toda a educação e os cuidados do corpo, o casamento, a medicina, a agricultura, a guerra, a palavra e o silêncio, as relações entre os homens e as relações com os deuses, pertenciam ao domínio da moralidade: esta exigia que prescrições fossem observadas, sem pensar em si mesmo como indivíduo. Nos tempos primitivos, tudo dependia, portanto, do costume e aquele que quisesse se elevar acima dos costumes devia tornar-se legislador, curandeiro e algo como um semi-deus: isto é, deveria criar costumes — coisa espantosa e muito perigosa! — Qual é o homem mais moral? Em primeiro lugar, aquele que cumpre a lei com mais freqüência: por conseguinte, aquele que, semelhante ao brâmane, em toda a parte e em cada instante conserva a lei presente no espírito de tal maneira que inventa constantemente ocasiões de obedecer a essa lei. Em seguida, aquele que cumpre a lei também nos casos mais difíceis. O mais moral é aquele que mais sacrifica aos costumes; mas quais são os maiores sacrifícios? Respondendo a esta pergunta, chega-se a desenvolver várias morais distintas; contudo, a diferença essencial continua sendo aquela que separa a moralidade do cumprimento mais freqüente da moralidade do cumprimento mais difícil. Não nos enganemos acerca dos motivos dessa moral que exige como sinal de moralidade o cumprimento de um costume nos casos mais difíceis! A vitória sobre si próprio não é exigida por causa das conseqüências úteis que tem para o indivíduo, mas para que os costumes, a tradição apareçam como dominantes, apesar de todas as veleidades contrárias e todas as vantagens individuais: o indivíduo deve se sacrificar — assim o exige a moralidade dos costumes. Em compensação, esses moralistas que, semelhantes aos sucessores de Sócrates, recomendam ao indivíduo o domínio de si e a sobriedade, como suas vantagens mais específicas, como a chave mais pessoal de sua felicidade, esses moralistas constituem a exceção — e se vemos as coisas de outro modo é porque simplesmente fomos criados sob a influencia deles: todos seguem uma via nova que lhes vale a mais severa reprovação dos representantes da moralidade dos costumes — eles se excluem da comunidade, uma vez que são imorais, e são, na acepção mais profunda do termo, maus. Da mesma forma que um romano virtuoso de velha escola considerava como mau todo cristão que “aspirava, acima de tudo, à sua própria salvação”. — Em toda a parte onde existe comunidade e, por conseguinte, moralidade dos costumes, reina a idéia de que a punição pela violação dos costumes recai em primeiro lugar sobre a própria comunidade: esta pena é uma punição sobrenatural, cuja manifestação e limites são tão difíceis de captar para o espírito, que os analisa com um medo supersticioso. A comunidade pode obrigar o indivíduo a reparar, em relação a outro indivíduo ou à própria comunidade, o dano imediato que é a conseqüência de seu ato, pode igualmente exercer uma espécie de vingança sobre o indivíduo porque, por causa dele — como uma pretensa conseqüência de seu ato — as nuvens divinas e as explosões da cólera divina se acumularam sobre a comunidade — mas ela considera, no entanto, acima de tudo, a culpabilidade do indivíduo como culpabilidade própria dela e suporta sua punição como sua própria punição: “Os costumes estão relaxados”, assim geme a alma de cada um, “uma vez que tais atos se tornaram possíveis”. Toda ação individual, toda maneira de pensar individual fazem tremer; é totalmente impossível determinar o que os espíritos raros, escolhidos, originais tiveram de sofrer no curso dos tempos por serem assim sempre considerados como maus e perigosos, mais ainda, por se terem sempre eles próprios considerado assim. Sob o domínio da moralidade dos costumes, toda forma de originalidade tinha má consciência; o horizonte dos melhores tornou-se ainda mais sombrio do que deveria ter sido."

[F. Nietzsche, "Conceito da moralidade dos costumes", "Aurora", nº 9,]

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