quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Resenha: Cadernos de Poemas & Outras Arqueologias

Resenha do álbum "Cadernos de Poemas & Outras Arqueologias", conjunto de minhas canções criadas ao longo de 2022:

Nenhum poeta tem pudor com relação às suas experiências, isso já há muito se sabe. Por vezes, é preciso tomar distância, questão de asseio, talvez?, para lidar com alguns registros do coração, quão sujos de sangue & suor frios; lágrimas e outros fluidos corporais podem emergir. Aqui estão registradas as experiências da minha coragem, meu eu-lírico, ao longo do último ano: a morte do meu pai; a anunciação da minha segunda filha; meus dramas mais íntimos e inconfessáveis; as mais indizíveis dores; enfim, a solitude mais insondável — quase tudo o que se comunica é em vão — e alguma vitória sobre mim mesmo, a um custo pessoal que traz rubor à face de qualquer uma de suas testemunhas. Supondo que tal poeta caia na tentação de exprimir os seus mais sublimes estados de espírito; as suas visões & mirações de um futuro prometido; ou mesmo de cantar as minúcias de sua própria existência inaudita: isso tudo se dá ao largo da cotidiana multidão de pessoas pequenas com sua pequena curiosidade, suas covardia, vergonha e culpa. Ocorre que este poeta é um tentador, e essa definição ainda é uma tentativa... E, se por triste acaso do destino, aquela existência rara se permite ser vista por essa espécie de gente minúscula e retorcida, não é sem muito esforço que se supera o nojo que inspiram — mas, é bastante fácil passar por cima delas, saltando ou pisando, degraus que são diante de quem se eleva. Quem se equipara a esse poeta imodesto? Quem tem pulmões pra habitar suas alturas? Se ele intenta levar àqueles que ama a presença deste seu imenso espaço interior, quase sempre sente que lhes rouba o ar; lhes faz estremecer de frio; ouve dessas pessoas mesmo que “os feria mais que nunca!”. Correr precisamente esses perigos faz sangrar qualquer coração e, inevitavelmente, essa sangria respinga na poesia — quando ela não se resume a flanar por platitudes e amenidades da forma (ou mesmo da negação da forma... O “verso livre” é uma contradição e um crime contra o bom gosto!). Toda vez que a humanidade se afastou da tradição para trilhar novos caminhos e enfrentar os ressentidos que se regalam nas formas decadentes da cultura, houve solidão; ranger de dentes; tortura e gritos de desespero; foi chamada de “má”, proscrita para a escuridão da noite, quando a covardia dorme em sua cama quente e, então, a consciência de quem cria pôde lidar consigo mesma em paz. Ansiosa pelas novas auroras, que trarão o sol que ilumina tudo, que dá cor a tudo, ela sabe que também sua luz pode queimar: de que outro modo poderia brilhar? É preciso que essa nova humanidade arda em suas próprias chamas: como poderia criar sem antes destruir a si mesma, velho edifício fundado em preconceitos e equívocos? Se suas descobertas são as mais dolorosas; se o seu fardo é o mais pesado; se sua verdade é a mais singular e a sua força a mais desumana: somente assim serão abertas as largas avenidas pelas quais o futuro de suas filhas & canções poderão passar e, vingando seu esforço, honrar essa indizível dor, cumprir os desígnios desta vida soberana. Até lá, não “sigo”: faço a minha estrada, superando com deliciosa malícia mesmo a morte, pois, “somente onde há túmulos há ressurreições”. E não se enganem: não há prazer na dor, senão, apesar de toda dor — Ah, os mistérios do gozo que desembainha a espada e ergue o “sim!” à vida acima de tudo! A serviço da ciência de um futuro possível, um futuro tal onde a afirmação do amor baste como substância da vida enquanto experiência humana na Terra, e se algum dia a humanidade vindoura precisar elucidar “como chegamos até aqui, neste presente magnífico feito de beleza & força, alegria & liberdade?!”, ofereço os meus cadernos de poemas & outras arqueologias.

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