sexta-feira, 2 de novembro de 2018

Das Coisas Primeiras e Últimas

Nietzsche está na moda — que lástima. É imperioso reconhecer que não vivemos um tempo em que haja leitores para o Frederico; quiçá houve algum dia. Duvidamos ainda que hoje ocorram leitores, seja qual for a espécie. Codificar símbolos não torna ninguém um "leitor" — no sentido que aqui quero imprimir. Um computador faz o mesmo. O mero trato da técnica; o privilégio conferido aos "conhecimentos técnicos": como cheira mal este nosso tempo!
Pois bem. Ainda agora ocorreu-me um sentimento de falta, uma lacuna, oco no peito: lendo sobre novas fronteiras da astrofísica, senti falta de um pensador que, tal qual Nietzsche, escreva suas impressões sobre a ciência, as "coisas primeiras e últimas", da nossa era com a mesma liberalidade e espírito curioso e especulativo. Quem conhece suas obras, sabe como acertaram em algumas previsões, mirando a flecha bem no peito do futuro. Um caso que talvez seja simbólico deste fenômeno é a sua antevisão da navegação aérea presente, salvo engano, na "Gaia Ciência" (1882).
A humanidade ainda patina no gelo; o despertar, o florescimento da consciência humana é um fenômeno recentíssimo. Medindo por uma escala que tem por predefinição toda a história humana sobre a Terra, os últimos séculos, em que se vive uma perene batalha (por vezes sangrenta, inglória...) pela iluminação, não são mais do que o breve instante em que abrimos os olhos pela manhã — após uma longa madrugada. A "história humana" mesmo é algo que acabou de nascer: até bem pouco tempo atrás, a "humanidade" era uma concepção totalmente diversa do que a usamos aqui. 
Os recentes acontecimentos no mais que trágico enredo da vida social e política deste país me fizeram recordar do conceito nietzscheano de corrupção — como um fenômeno de degeneração dos instintos, quando os indivíduos e. em maiores escalas, as comunidades e os povos, elegem para si aquilo que precisamente lhes faz mal. E este "mal" é algo fisiológico: de modo geral, se refere à uma escolha ruim para a dieta de nutrição física/alimentar e mental/intelectual; toda espécie de vícios e maus hábitos, etc. Este é o saber do decadént: reconhecer em si a corrupção dos instintos e tratá-la a partir da experiência — nisso já se gasta toda uma vida. A "surpresa": todo o frágil tecido retórico que se revelou vitorioso em nosso território foi costurado com base na "luta contra a corrupção". Talvez seja a voz do corpo — deste instinto mais profundo, o soberano operador da máquina-homem — falando mais alto: mas, como estão corrompidos os instintos, o corpo e suas partes não se entendem... miram no alvo, mas atiram no próprio pé.
Tenho visto um pouco aqui e ali uma nova corrente da psicologia, o behaviorismo radical. Bem, eu ainda releio o "Aurora" e a "Gaia Ciência" sempre que me adoeço: é, desde que os descobri, meu melhor remédio. E um novo corpo nasceu de mim mesmo a partir de uma radical dieta de uma nova música, hábitos, alimentos, companhias e livros. E a saúde, em mim, transborda como música. Mas quem sou eu para receitar algo para a humanidade? Não me é dado ser o alienista desse hospício! Já o dissera:

♪ Eu passo a minha humanidade adiante
Posto que a minha fonte é incessante
Apesar de minha espécie estar em extinção
Sou mais raro ainda a cada estação ♫