domingo, 8 de setembro de 2019

"Volta PT": A Covardia Como Política

1. A covardia, como fenômeno político, que recomenda um medroso "passo atrás" ("Volta PT!") não ocorre desconectada da decadência geral da cultura demonstrada pela nova hegemonia da "nova era". Não poderia ocorrer, pois, é parte integrante da grande dialética que constitui a nossa sociedade.

2. O petismo/lulismo ou como quer que se chame a hegemonia que governou o Brasil de 2005 (arranjada no contexto golpista do "mensalão") até 2015 (dissolvida no grande caos econômico e desarranjo de articulação política da fraude eleitoral do 2º mandato da Dilma, que, acaso não se lembrem os caros saudosos petistas, executou um plano econômico rigorosamente igual ao que acusara seus oponentes em 2014 de fazer!), nos seus limites conciliadores de interesses fundamentalmente antagônicos, absorvendo e internalizando a contradição entre tese e antítese,  gestou essa síntese que, ainda que instável, por ora ainda governa o Brasil: o "lava-jatismo" + "bolsonarismo", ambos com a hegemonia evangélica, não mais católica, de fundo (a fratura deste arranjo será a nova dialética, da qual estamos claramente excluídos, no mínimo, pela próxima década).

3. Esta covardia não é fruto do acaso. Ela é o resultado do crescimento do "ressentimento" como um fenômeno de massas a partir do momento em que o PT decidiu tomar o "atalho" do poder: elevar Lula, um mero operário acima da média (a quem alguns acusam de ter sido forjado pela inteligência norte-americana no contexto da doutrina da "sístole-diástole" idealizada por Golbery), ao status de líder total, inquestionável e prepotente.

4. Mas Lula não é infalível, como queria crer essa parcela da esquerda cristã brasileira, transferindo sua devoção afetiva/religiosa a essa figura ao mesmo tempo incrivelmente simpática e terrivelmente odiosa. Ele mesmo se apercebeu deste seu poder e passou a adotar uma postura retórica messiânica, irreal, como todo político, enaltecendo seus feitos para além da realidade material, utilizando de políticas econômicas intervencionistas que funcionaram como nada além de artifícios para cativar um eleitorado certamente castigado pelas elites políticas brasileiras ao longo da história deste triste país.

5. É neste enorme contingente de massas desprovidas das condições mais básicas de vida, excluídas do usufruto dos produtos e resultados do trabalho (e grande parte dela excluída do trabalho mesmo!) que se desenvolvem as condições psíquicas para a instalação do ressentimento, que produz ódio, que exige vingança. Essa massa que ascendeu materialmente, ainda que pouco, durante a hegemonia lulista dividiu-se em 2 partes, dada a necessidade da psique de resolver sua identidade ante o antagonismo com um "grande outro":

5.1. uma porção se desprendeu do ideário e da política de afetos do lulismo, absorvendo os valores da tradicional privilegiada casta da classe média urbana do Brasil. ter um carro, financiar um apartamento, colocar os filhos numa escola segregada do povo, contratar planos de saúde (por mais que a maioria destes serviços sejam um enorme engodo): tudo isto, desde o processo de urbanização e industrialização do Brasil, sempre foi signo do status social das famílias no seu processo nojento e cruel de tornar-se "brasileiros de bem". Este fenômeno, desconfiamos já há algum tempo, ocorreu em todos os outros períodos de progresso econômico experimentado no Brasil (os "50 anos em 5" dos anos 1950 e o "milagre econômico" dos anos 1970). Estas pessoas deixam de ser "caboclos", "negros", "camponeses" expulsos de sua terra, brancos identificados com a origem na pobreza para tornarem-se o "sentido" da sociedade: a classe média brasileira de bem.

5.2. Enquanto outra porção desta mesma massa, participando do mesmo processo de acumulação econômica e elevação de patamar material, com as mesmíssimas aquisições econômicas listadas acima para demonstrarem o mesmo status social, contudo, com um pouco menos de apreço por estes simbolismos (talvez com pouco mais consciência da fragilidade de seu processo de aquisição, dependente de uma correlação de forças sutil), igualmente sentiu-se o sentido histórico brasileiro, contudo, logrou em identificar-se com as identidades, todas elas muito reais, mas que eram esvaziadas de conteúdo a média que utilizadas pela retórica do petismo para manter sua fidelidade eleitoral e integrar as massas ao modo de vida sui generis do capitalismo brasileiro: é a classe média "que veio da senzala", é o "índio" que entrou pra faculdade, é o "nordestino" que comprou a casa, é o "Pobre" que anda de carro. Noves fora que é sempre patético observar esse apego das identidades às conquistas econômicas que a integram no capitalismo mais selvagem que há na Terra, essa parcela da massa ocupou-se muito pouco em exercitar suas virtudes. Como disse anteriormente, estas identidades perdem conteúdo. O foco do petismo, para sustentar seu arranjo conciliador, deveria ser esse mesmo: as pessoas devem alegrar-se em consumir, fazendo a roda da economia capitalismo semicolonial brasileira girar, e não se ocupar em produzir crítica a este processo. Como a ideologia foi calcada no esquema de pensamento religioso, também aqui é "pecado" blasfemar contra o ídolo.

6. É com romantismo idealista, ressentidos contra nós, os críticos, que esta fração da classe ascendente ora por "volta PT"! Como oração, devoção religiosa: é irracional, não está em contato com a realidade em nenhum momento. As eleições de 2018 são prova irrefutável desse processo: ainda que Lula certamente fosse eleito pelo voto, as forças articuladoras do grande golpismo pós-2016 (muitas delas ex-aliadas do petismo no poder) não permitiram e não permitirão! O petismo mesmo ainda se alimenta desta ilusão da via eleitoral, pois, deposita muita credibilidade no sistema que apenas o vampirizou para explorar a classe trabalhadora.

7. Portanto, nós, os críticos, que somos uma consciente minoria e que nos forjamos em outras diversas condições, mormente no processo de decadência econômica da classe média tradicional, somos, pela acumulação geral deste processo histórico, mais profundos na análise, ainda que não sejamos creditados.

8. A covardia apenas se instala onde não exercitou-se as virtudes do espírito, apesar de e, talvez até recusando todos os confortos materiais oferecidos pelo ciclo econômico. Neste sentido, certamente muitos que ascenderam com este fenômeno histórico podem ser críticos, pois, somos mais corajosos à medida que somos mais inteligentes — compreendendo inteligência como a capacidade de desconstrução e crítica. Quanto aos decadentes, A nossa superfície de contato com aquelas massas é larga, contudo, elas não nos entendem. O nosso desprezo, mais ou menos evidente, por seu modo de vida — não de "negros", "índios" ou "camponeses" degredados, mas de classe média! — é tido como profundamente ofensivo. Com pouco esforço para sermos simpáticos, pois o somos genuinamente, nos explicamos, mas não somos compreendidos (vejam o ridículo em que quase sempre é colocado um Suplicy, por exemplo, que é o homem deste tipo mais próximo ao petismo).

9. Conscientes deste processo, recusamos o "volta PT" e acusamos sua covardia a todo o momento, relembrando que esta síntese experimentada no presente foi gerada na dialética cujo útero e primeiro abrigo foram os próprios governos petistas.

10. Portanto, por acusar esta política irracional carregada de afetos tristes, ambas as frações daquela massa ascendente (os "crentes lava-jateiros bolsonaristas da nova era" e os "Eu sou Lula porque Lula é o negro, o índio, o gay e a mulher!") Só podem nos odiar. Como não nos entendem e porque somos tentadoramente simpáticos, pois temos um lastro no uso das linguagens (verbais, corporais e na economia de afetos através delas, transparecendo, muitas vezes, uma involuntária superioridade moral — creiam-me: dito isto com a mais serena das autocríticas) pelos longos anos longe do imperativo do trabalho como filhos da classe média tradicional (dela somos mera degeneração), e estamos em frequente contato, este ódio muitas vezes não consegue ser racionalizado em argumentos. Portanto, torna-se um ódio recalcado que, não com pouca frequência, é chamado de "amizade". No fim das contas, este ódio só poderá crescer.

11. Zaratustra desceu a montanha falando de amor e foi incompreendido e ridicularizado, nesta sequência. Tão logo se apercebeu de seu equívoco e procurou sua solidão e aqueles que o seguissem, pois, queriam seguir a si mesmos. E mesmo destes se despediu na sua hora mais silenciosa, retornando à sua montanha.

12. Talvez eu seja mais um mau-caráter que tenha enganado a todos na minha práxis cotidiana e mesmo a você que por ventura tenha chegado até aqui nesta linha deste texto! É com cortesia no coração que Faço o favor de retirar-me para a montanha. Suspeito que dela desci cedo demais, tenha falado demais com quem me desentendi demais!