sexta-feira, 6 de maio de 2022

Uma Vez É Nenhuma Vez

1. Aves de rapina — Mais de uma vez na vida conheci mulheres na forma de aves de rapina que, com suas garras embebidas no veneno do ressentimento aos homens, quiseram arrancar minhas tripas fora e perscrutrar minhas entranhas; testar os limites dos meus instintos; tatear os contornos das minhas virtudes; avaliar a consistência da músculatura da minha vontade, como se eu fosse um concupiscente e vulgar bovino, bufando diante do tecido vermelho. Tão logo descubro essa sua suposição sobre mim, estraga daí por diante o meu gosto... Em verdade vos digo: são animais de singular beleza, rara delicadeza e a sua existência mesma é fator de enternecimento do espírito, mesmo e em especial, daqueles mais brutos. Essas mulheres espiritualizadas, de luminoso intelecto, sempre me cativaram. Contudo, como paulatinamente manifestam a intenção de me ensinar a sua moral, me disciplinar na sua dietética de hábitos e gestos, me converter a partir do seu evangelho — a sua boa-nova, uma nova culpa, adornam com as mais belas imagens e palavras — não tarda em chegar a hora em que me cansam e eventualmente me enojam. Querem me arrebatar para com isso comprovar suas teses, como se eu fosse um ambulante objeto de estudo, um homem ordinário afoito por me satisfazer! Mal sabem que me regalo em tudo aquilo que genuinamente me atrai — o que não vem ao caso. 

2. Einmal ist keinmal — Deveria ser tomado como regra geral a realização de qualquer experiência mais de uma vez: apenas assim (ou nem mesmo assim!) afastamos a dúvida sobre o caráter do primeiro evento. Numa fórmula matemática: tudo 'n' vezes. Casar, no mínimo, duas vezes: descobrir com a segunda experiência se demos sorte ou azar com a primeira! 

3. Em favor de Zeus — O meu desejo nunca me envergonha: essa é a recompensa que recebo da vida após anos de intensa disciplina do espírito. As canções que ouço, comidas que degusto, toda espécie de prazer que arranco do úbere da existência: Se ouço "Still crazy after all these years", "Walking with gods" não perde o sentido e o gosto para mim; quando me alimento de picanha, o camarão não se sente desprezado; quando aprecio um espetacular pôr-do-sol, como o de hoje sobre o horizonte da Ceilândia, a aurora que se sucede não se enciúma — tão magnífica é a máquina de produção da minha vontade, que sempre mais aflora do meu peito, transborda dos meus olhos. O mesmo deveria ocorrer com as mulheres que me atraem na sucessiva sequência de parceiras ao longo da vida. Porém, nada mais vergonhoso na humanidade que sua neurose sobre as diversas formas de expressão da sexualidade, degeneração esta que se manifesta tanto no fervor religioso que tortura um homossexual cumprindo a expectativa de gênero, casado com esposa e filhos, quanto no jovem casal liberal que frequenta boates de swing abobalhados pela ousada novidade, enriquecendo, com seu dinheiro e a divulgação de seus corpos, o grosseiro cafetão/traficante dono do local. Sejamos livres, pois, para fruir dos muitos prazeres da vida — sem nada dever nem se envergonhar diante de ninguém! Lætitia, meus amigos, como condição sine qua non da existência! 

4. Contra toda a metafísica — Deus está morto, mas, seu fantasma ainda ronda. A estátua foi derrubada: contudo, ficará para sempre marcada na rocha a sua sombra. Com essas imagens aquele grande alemão já havia descrito o fenômeno que intento expôr: a moralidade religiosa de caráter laico. O sentimento religioso sempre foi raro e a história de todas as religiões narram nada mais do que o roteiro de peças teatrais nas quais as personagens encenam aquele sentimento, muitas vezes nunca tendo o experimentado de fato. Ainda hoje na Terra há muita empedernida moralidade das antigas religiões travestida de belas virtudes modernas. Os moralistas laicos da modernidade padecem de uma má-interpretação do corpo e dos instintos, e seus pregadores querem acorrentar à humanidade às suas próprias correntes. Deles, mantenho estratégica distância. Pra longe de mim, gente venenosa! Prefiro o meu quarto frio do que aquecer minha alma no fogo da sua fogueira! Mesmo assim, para meu secreto júbilo, resultado de profundo auto-conhecimento: em mim se manifesta genuinamente o sentimento religioso, o religare, de forma laica, materalista, com lastro na minha apreciação da história da humanidade e na minha identificação com o seus aspectos universais. Não compreendo as mentes dos guetos. Nem acredito em nada: tudo aquilo que existe me compele em sua direção para avaliá-lo, creia eu naquilo ou não. No mais, fantasminhas moralistas ("deuses") não existem.