quarta-feira, 1 de julho de 2020

O Perigo No Olhar




O perigo no olhar — Quem tem o olho de enxergar inimigos nunca deve olhar para os lados.

domingo, 3 de maio de 2020

Quarentena de 2020: Impressões, Memórias e Vivências

1. Sentindo que talvez essa possa ser a última oportunidade de deixar registrada para a posteridade as minhas impressões, memórias e vivências deste período de quarentena, farei aqui o esforço de condensar o que me parece digno de nota. 

2. Estive afastado do trabalho entre os dias 3 e 10 de março com uma "herpes zóster", uma reinfecção da catapora que tive há 21 anos. Nem sabia que isso existia. O vírus se mantém latente em algum nervo do corpo. No caso, tive a manifestação no nervo trigêmeo do lado esquerdo da face. A médica que me atendeu na UBS 6 de Taguatinga, muito atenciosa e gentil, Dr.ª Bruna, me olhou com piedade e me receitou paracetamol+codeína já me avisando que eu possivelmente teria dores lancinantes. Eu fui pra casa meio assustado, mas não senti absolutamente nada além de coceira e um certo "pulsar" do nervo. Guardo as pílulas ainda hoje. 

3. No dia 10 de março realizei a perícia médica na subsecretaria de saúde, no subssolo do edifício Parque Cidade, na asa sul. Comentei com a médica que ali era um ambiente totalmente insalubre, não há a menor circulação de ar pelos corredores ou nas salas de perícia, e como isso era inseguro já naquele início da manifestação da pandemia em Brasília. A médica concordou e pediu pra que eu denunciasse na ouvidoria. Não foi preciso: poucos dias depois as perícias presenciais para casos suspeitos de COVID-19 foram suspensas. 

4. Lecionei no CEF 2 normalmente à tarde e na quarta-feira subsequente, tentando reorganizar os conteúdos das aulas que meus alunos perderam. Já na quarta à noite, fomos todos surpreendidos pela suspensão das aulas a partir de quinta, 12 de março. 

5. Inicialmente, a suspensão era por apenas 5 dias. Depois, anteciparam o recesso de julho para março. Depois, o GDF instituiu o teletrabalho e suspendeu as aulas até junho. E cá estamos. Tenho minhas dúvidas se efetivamente voltaremos em junho e, mais ainda, em como poderemos voltar com segurança...

6. Neste fim de semana ainda vivi "normalmente": fiquei com a Aurora, fomos à piscina do condomínio, fomos à festa de aniversário da minha sogra no sábado, mas, desde então, não estive mais em encontros sociais e restringi ao máximo as visitas à Aurora na casa da mãe.

7. A primeira semana de isolamento social foi a mais angustiante: as crises de ansiedade eram terríveis e frequentes, mais de uma por dia. A regularidade do sono foi há muito perdida: ainda ando acordando por volta de meio-dia. 

8. Tentei manter uma rotina de exercícios em casa e falhei. Ocupei o tempo com os cuidados domésticos: lavei o banheiro, fiz uma limpeza pesada no quarto e na sala, mudei a disposição dos móveis, fiz a cama na sala e montei a bateria no quarto (improvisando um estúdio onde eu pudesse me desestressar sem incomodar muito os vizinhos, de portas fechadas) por quase um mês. Tentei manter uma dieta equilibrada e consegui perder alguns quilos. A cada 2 ou 3 dias e corri ou pedalei. Há muitos dias não corro, por exigência dos meus joelhos, mas ainda pedalo de vez em quando. Quase sempre à noite, mas às vezes pego o sol da tarde. Tenho pedalado muito, longas distâncias, sempre mais de 20 km. O máximo da quarentena foi 54 km, ida e volta do lago paranoá num domingo de sol em março quando ainda pude matar a saudade de nadar! Esse foi o melhor dia da quarentena.

9. A incerteza sobre tudo, o inusitado da situação, o medo da morte prematura, e a preocupação com os queridos me compeliram a manter contato frequente por telefone e whatsapp com familiares e amigos, mormente nos primeiros 20 dias. O primeiro mês me pareceu o período mínimo de adaptação de todos. 

10. Inicialmente, Aurora estava aproveitando as férias: onde mora tem bastante espaço e podia fazer, basicamente, de tudo. Mas a segunda quinzena de abril foi mais difícil para ela, manifestando ansiedade, tristeza e saudade da vida antes da quarentena. Digo sempre que tudo vai passar, e é verdade, mas não consigo dizer que tudo será como antes. Não vejo como voltaremos à "normalidade" tão cedo, se é que não teremos, simplesmente, um "novo normal". Apesar de visitá-la uma vez por semana, talvez, é sempre arriscado, pois, temo ser portador assintomático do coronavírus e contagiá-la e ela, por sua vez, contagiar a mãe que está gestante, a avó (pressão alta) ou o avô (fumante, idoso). 

11. Longe de minha filha, minha vida entra em stand-by: não cozinho, não lavo a louça, não como, não vivo (pois que a vida perde o sentido)... gasto meus dias sozinho lutando contra a ansiedade: jogando jogos (o melhor passatempo! Tomb Raider e Mortal Kombat em versão M.U.G.E.N. que eu nem sabia que existia... levei o notebook antigo da letícia para Aurora poder jogar também, ensinei ela a jogar Super Nintendo: Donkey Kong, Alladin e Scooby Doo...), acompanhando o debate público pelas redes sociais ou simplesmente me estimulando eroticamente por horas.

12. Livros, tenho lido muito pouco: ler exige de mim uma concentração e objetividade de espírito que me escapam nessa quarentena. A despeito disso, consegui ler uma edição de cartas de Epícuro e outra de Sêneca. Sêneca sempre me pareceu muito interessante, a partir de referências indiretas e citações esparsas na internet, mas sua leitura não me animou, não me comoveu... me pareceu que se eu pudesse enviar meus textos como cartas para ele na Roma antiga, ele teria muito o que aprender. Sempre releio Nieztsche que é com quem tenho identificação profunda. E Releio-o sem método: os livros que já li abro aleatoriamente, folheio, às vezes me detenho em uma passagem favorita... acho que essa é a leitura que levarei para a vida.

13. Desconheço, na vida, o significado da palavra "tédio": sou inquieto demais, interessante demais, inteligente demais para me entediar. Em casa, eu faço abdominais ou apoios, polichinelo, ou saio pra correr ou pedalar ou vou arrumar a casa ou vou ouvir minha coleção de discos ou baixo algum filme pra assistir. Não gosto muito de filmes, sinto que estou tendo 2 horas da minha vida roubadas, um filme pra me cativar tem que ser muito bom. Nessa quarentena baixei pra assistir "Uma cilada para Roger Rabitt", clássico da minha infância, e "Sétimo Selo", do Bergman, que é simplesmente perfeito: engraçado, profundo, triste, bonito. Me sinto como Antonius block: não me arrependo do caminho que trilhei, mas estou cansado... Ainda em março, finalizei e gravei o álbum "Calamidade Pública!" (ainda não divulgado), criado a partir de canções que fiz por volta de 2006. Esse é o projeto que quero findar antes de morrer: deixar registrada e bem guardada toda a minha obra musical.

14. O primeiro mês, aquele período de adaptação, foi o período em que ouvi novamente toda a discografia do Killing Joke, em especial "Extremities, Dirt and Various Repressed Emotions" (1990), que me parece uma antevisão desse mundo apocalíptico em que vivemos. Também ouvi Alceu, Tom Zé, Chico, Simon & Garfunkel, Titãs, Legião Urbana, Paralamas...

15. Já são quase dois meses com a vida suspensa. de certa forma, é impressionante como o tempo passou rápido! 

16. O momento mais angustiante e a saída ao mercado: geralmente uma vez por semana. Nos primeiros 20 dias não ia de máscara, tinha vergonha, me sentia meio idiota... mas a necessidade me fez me acostumar, ao passo em que a medida veio sendo adotada pelas outras pessoas, me sinto melhor e já estou confortável, pareço um ninja do Mortal Kombat. Opto, em regra, por ir à noite, depois das 22hrs, quando já não há muita gente pela rua. Levo comigo no bolso sempre que saio de casa um vidro de desodorante spray preenchido de álcool 70% e uso para higienizar as mãos sempre que toco em alguma superfície. 

17. No início, os panelaços eram todo dia. Nos primeiros, muita gente ainda defendia o cretino, gritando "mito", a maioria esmagadora criticava fartamente o presidente. Durante o dia, muitos gritavam de suas janelas "bom dia", "boa tarde", orações, cantavam junto das lives dos artistas sertanejos da moda, torciam a favor e contra o Babu (BBB)... mas de uns 20 dias pra cá, todas essas manifestações de catarse cessaram. Todos nos cansamos, acho. Tenho a impressão de que a necessidade psicológica agora é outra, mais íntima, de mais instrospecção e, não por acaso, volto a escrever aqui. Após 13 anos de blog percebo nitidamente os períodos em que estou mais introvertido e em que estou mais extrovertido justamente pelo quantidade de postagens por mês/ano. 

18. Assim como eu, muitos parecem sentir a necessidade de praticar atividades físicas ao ar livre. Eu passaria bem uma quarentena totalmente dentro de casa acaso morasse em uma casa mesmo, com espaço o bastante pra me movimentar... vivo em 29m², sem acesso a luz direta do sol, o que faz com que eu sinta uma necessidade muito forte de sair de casa de vez em quando para me exercitar e tomar sol.

19. Passei mais de um mês sozinho. Há duas semanas a Letícia acabou vindo para cá e tudo ficou diferente. Nós passamos praticamente 4 anos juntos, com um convívio muito intenso, e nunca havíamos experimentado tanto tempo distantes. esses últimos dias foram mais amenos, mais doces, mais prazerosos. Hoje ela voltou pra ficar com a mãe e sinto novamente a mesma abstinência dos primeiros dias. Mas vai passar.

20. Outro aspecto da quarentena: desde a adolescência eu não havia ficado tanto tempo sem sexo. Nas primeiras semanas tive sonhos eróticos recorrentemente. Depois me acostumei, mas, ainda assim, a necessidade física do toque é muito latente.

21. Ainda que eu viva relativamente bem sozinho, gosto de minha companhia e de como ocupo meu tempo, a situação atual, mais pela conjuntura política desse país infeliz que pela pandemia propriamente, tem sido para mim motivo de muita angústia, de modo que meu estresse está elevadíssimo a ponto de minhas fístulas inflamarem novamente (a última vez que isso havia acontecido fora em janeiro de 2016). A partir de hoje, vou me abster do café, de comidas e bebidas gordurosas e tentar fazer mais exercícios de relaxamento. Não quero ter um câncer de intestino tão cedo nem quero ter que fazer cirurgias. Quanto à minha saúde, eu tenho um plano mais ou menos claro: quero morrer soberano. Sem desespero e sem apegos. Até lá, tenho muito ainda por viver.

22. Espero que todos possamos sair dessa quarentena com um compromisso irrecusável, inquebrantável, com a vida. Hoje mesmo quero repovoar a Terra e estamos decidos, eu e Letícia, a termos nossos filhos. A vida é o nosso único bem e privilégio, façamos dela bela, forte e saudável e feliz. Assim, honramos a Terra e justificamos toda a humanidade até aqui. Força!

Paráfrase VI

Visita ao Museion. — Também eu estive no museion e frequentemente para lá voltarei; e não somente vinho ofertei para poder falar com alguns artistas. Quatro foram os pares que não se furtaram a mim, o viajante: Caetano e Gil, Raul e Belchior, Chico e Milton, Tom Zé e Alceu. Com esses devo discutir quando tiver longamente caminhado a sós, a partir deles quero compor ou não, a eles desejarei escutar, quando derem ou negarem razão uns aos outros. O que quer que eu diga, escreva, cante, para mim e para os outros: nesses oito fixarei o olhar, e verei seus olhos em mim fixados. — Que os contemporâneos me perdoem se às vezes me parecem sombras, tão pálidos e aborrecidos, tão inquietos e oh! tão ávidos de juventude: enquanto aqueles me aparecem tão joviais, como se agora, depois de envelhecidos (ou mortos), não pudessem jamais se cansar da juventude. Mas o que conta é a eterna jovialidade: que importa a "eterna juventude" ou mesmo a juventude?!

(Paráfrase do aforismo 408, "Opiniões e sentenças diversas", Nietzsche).