terça-feira, 21 de junho de 2022

Resenha - "A História da Música de Juliano Berko" (2019)

 Posto aqui esta resenha nunca antes publicada do meu álbum de 30 anos de vida/15 anos de música: "A História da Música de Juliano Berko" (2019). 

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Uma árvore jovem, mas que, contudo, já atingiu o ápice da altura da sua espécie. Uma imponente Sumaúma, cujas virtudes — e mesmo vícios — não se medem com as demais árvores ao seu redor: sobre elas projeta sua sombra. Representa para elas o terror daquilo que bloqueia a luz. Um grande mal-entendido, como sabem aqueles com altura o suficiente para o conhecimento. Mal sabem esses pequenos arbustos ingratos que, a bem da verdade, ela as protege da virulenta radiação do sol de um grande meio-dia. Altiva, esta Sumaúma toma a ingratidão e a desconfiança das plantas que grassam ao seu redor como a parte que lhe cabe. E ainda generosa: permite que mesmo aves de rapina, Uiraçu (ou Harpia, para os gregos), façam nela sua morada; pequenas orquídeas proliferem em seus galhos, nutrindo-se de sua abundância — alegra-se de sua força e coragem, de suas cores e aromas. As suas raízes são profundas, lançando-se em direção à Terra com sede de saber, libido sciendi, sensual e sagaz; entre elas se entrelaçam víboras, Sucuris (ou Hydra, para os antigos) e outros monstros que rastejam na escuridão da floresta. Dobra-se em altura com o tronco e a copa, ansiando pelo céu do imaculado conhecimento, pura e plena daquilo que, para tal, é condição fundamental: o amor.

Aqui se percebe como estas contradições, que se expressam livremente na vida, se constituem metáforas de seu próprio corpo, a sua própria constituição enquanto ser vivo prescinde do tacanho moralismo que as renega e disfarça. Isso sabe o que se tornou mestre de si mesmo; isso aprende o que é o seu aprendiz. Aquele é Zaratustra, com sua águia e serpente, raízes e galhos; este é o Jovem na montanha, com seu cansaço e inveja, autocomiseração e autopenitência.

A obra que aqui se apresenta nada mais é do que o fruto do diálogo entre estas personagens ao longo das últimas três estações ocorridos em meu espírito que, refletindo sobre minha vida e as questões fundamentais que me são familiares, sobre a metade da minha existência dedicada à música — venho me tornando compositor de canções desde os 14 anos — e sentindo a necessidade de contar a minha história e a história da minha música — que, para todos os efeitos, é a grande tarefa da minha vida, aquilo que me é único e indissociável. Para tal, tomo como parte estruturante da referida obra o capítulo “Da Árvore na Montanha”, do Zaratustra de Nietzsche, transformado em versos e musicado, dividido em quatro partes. Ora toma protagonismo o mestre, ora o aprendiz. O mestre, já maduro, usa um tom de voz mais baixo, uma oitava mais baixa ao cantar. O aprendiz, ainda verde, usa um tom de voz mais alto, põe-se a gritar uma oitava mais alta ao cantar.

Esta obra foi pensada para representar em cada canção um ou mais estilos e ritmos musicais que constituíram a minha formação: o proto-punk rock e power pop de minha origem e fundação; o reggae, reggaeton, o funk e os demais ritmos de origem africana e latina; o jazz, blues e bossa-nova de escalas pentatônicas e rítmica mais complexas; o baião, a balada, o eletrônico, o folk e o indie: todos presentes, mais de um em alguns casos, em cada canção. Vejam meus amigos: eu já sei quem sou e conquistei o meu espaço. Com isso não quero dizer que disputo consciências nem que estou à venda; nem mesmo almejo ser ouvido por quaisquer ouvidos: não sou um músico miserável o bastante para tal. Sei que o deserto é longo, mas eu mesmo me constituí num abundante oásis: sou o meu próprio mecenas, sou o meu próprio ouvinte! Torno-me um animal mais raro a cada estação... Hoje mesmo meus melhores amigos e ouvintes estão mais distantes de mim: também o encontro com eles se torna evento menos frequente, pois, alguns dos que me acompanharam até aqui já não me prometem grande futuro e nos estranhamos... O deserto, portanto, tornou-se ainda maior. A Amazônia mesmo arde em chamas, fazendo do planalto central um anteprojeto árido do futuro da humanidade industrial baseada na exportação de commodities. De modo que se faz mister celebrar com este álbum conceitual os meus 30 anos de vida, 15 anos de música, de profunda alegria e de criação de sentidos e valores vivos — a despeito de toda a mendacidade e covardia da nossa cultura decadente, refém do ressentimento mais venenoso! Para longe com ele! Sobre tal é necessário até mesmo me impor silêncio, uma vez que algumas questões são expostas nas canções de maneira bastante loquaz — mais não é preciso dizer.

Nesta hora de música que apresento canto, danço, rio, choro e louvo a vida para satisfazer os imperativos da existência: está aqui registrada, então, esta minha história! Estão aqui gravadas estas minhas verdades! Carpe diem, amigos! Cave musicam, irmãos!

1.      The Tree On The Hill

 É a canção estruturante do álbum, dividida em quatro partes é o capítulo do “Assim Falou Zaratustra” de Nietzsche musicado a partir do cotejo entre algumas traduções em inglês. Algumas passagens são versificações literais compostos a partir do texto, outras são criações poéticas minhas a partir das imagens contidas no texto, em especial na parte IV. A divisão da canção em quatro partes produz 13 faixas, como a trilogia “Infinito Outubro” (2007), “Livro Livre” (2008) e “Coisa Pra Dizer” (2008); caso considere-se a canção como uma única peça, produz 10 faixas como a quase totalidade das obras após esse período inicial. Aqui, mostro a importância do folk dylanesco, da balada, do rock industrial, como o entendo: Killing Joke; e do rock progressivo na minha formação. Foi a segunda canção composta para o projeto, em idos de março. Ela abre o álbum com um arpejo acústico, em outras passagens utilizo o efeito de “slide” na guitarra sobre o mesmo arpejo, e fecha com uma belíssima balada na qual está presente um jogo de vozes ‘mais baixa+mais alta’, símbolo do esforço de unidade contra as pressões dissociativas que todos enfrentamos em nossa psique, a unidade entre Jovem e Zaratustra, mestre e aprendiz; tronco, copa e raiz.

 2.      Mare Tranquillitatis

 Foi uma tentativa de recriar o primeiro poema que escrevi, “A Lua”, escrito por volta de 2001 ou 2002. Lembro que havia me alegrado tanto com aqueles versos que cheguei a mostrar para algum amigo, colega de classe que me fez a cortesia de mostrar para a nossa professora de língua portuguesa. Eu não tenho esse poema guardado e apenas pude reter uma ou outra imagem ali evocada em minha memória, como o “farol” que guia os apaixonados... Certa noite eu esperava um ônibus sob um imenso luar que tomou meu espírito de nostalgia daquele poema e escrevi os versos todos da música logo que cheguei em casa. A música foi composta com apenas três acordes (C, F, Am), para rememorar o esforço juvenil de criação de um punk rock clássico, contudo, o arranjo é tão diverso que não parece assim tão simples. Por fim, adaptei o arranjo para o ritmo de um funk tradicional, “Miami beat”, ou coisa que o valha, o mesmo que utilizei em “Vivat Comaedia!” (“Endemônio”, 2017) que é a canção que fiz favorita da Aurora e havia prometido que faria outra com base no mesmo ritmo. Foi a primeira canção criada para o álbum, por volta de fevereiro. Daqui em diante, todas as canções seguem uma ordem cronológica de criação ao longo de 2019. Por fim, o seu título é o nome latino de uma região da face visível da lua.

 3.      Sunlight Paranoá

 Esta canção surgiu a partir de seu título que é um trocadilho com uma canção do Lobão, “Moonlight Paranoia”; quis fazer algo que a rememorasse, mas que fosse sua antítese em ética e estética, a antítese dessa hegemonia conservadora carcomida, no rock e na política, sob a qual ora vivemos. Os versos foram desenvolvidos a partir de um texto que publiquei n’O Verso Lá No Verso, “O aprendizado do mar”. É um reggaeton, algo que surgiu recentemente em meus ouvidos e que já havia me utilizado antes em “Alegria” (“Endemônio”, 2017). Me agrado da sutileza dos arranjos e do suave balanço deste ritmo latino. É uma ótima forma de mostrar o meu desprezo pela ética e estética do roqueiro classe-média latino-americano da periferia do mundo, afetado de superioridade diante dos povos tradicionais da América. Um autodesprezo, inclusive, e um apreço ao que nossa cultura produziu de original e diverso. Só é possível amar o diferente. Este afeto se repetirá mais adiante no álbum.

 4.      O Alquimista

 É uma das poucas canções que escrevi de uma só vez. Deu-se a partir da reflexão sobre a filosofia Nietzscheana da transvaloração dos valores nutrida das leituras do “Além do Bem e do Mal” e d’O “Anticristo”. Como faço há alguns anos, esta é a música do álbum cujo ritmo é divido em três tempos. Evoca belas imagens em seus versos e é uma canção poderosa em que rendo homenagens ao blues como forte influência indireta sobre minha obra.

 5.      Atrás Do Trio Elétrico (Só Não Vai Quem Já Morreu)

 Esta canção desenvolveu-se a partir do seu título, que me ocorreu no carnaval deste ano. Originalmente, queria criar um samba ou marcha carnavalesca, o que não se desenvolveu ao longo do processo criativo. Descobri uma canção do Caetano Veloso com o mesmo título, o que me levou a utilizar o estratagema dos parênteses para a diferenciação. É a mais política canção do álbum, por isso a mais afetada pela profunda degeneração cultural e moral que se experimenta a partir do ar que se respira hoje no Brasil. Nela, faço referência ao antológico samba-enredo apresentado pela Mangueira no carnaval deste ano e rendo homenagem ao pós-punk e ao hardcore, este como influência indireta, aquele como influência direta na minha constituição artística. É introduzida por um solo de bateria.

 6.      The Wonderer

 É a segunda canção em inglês do álbum criada, basicamente, a partir de aforismos de Nietzsche em inglês com o refrão baseado num jogo de palavras que causa uma suave aliteração. A música foi pensada para recriar um ritmo de funk/funk rock, que me utilizei por vezes, como outra de minhas influências colaterais. O título é um neologismo criado a partir de “Wanderer” (“Andarilho”) e “Wonder” (Maravilha). Seria algo como o “criador de maravilhas”. Há uma versão em português cujo título é “O Andarilhoso”. Possui uma citação de Heráclito que pesquei no twitter e com a qual muito me identifiquei: “One person is ten thousand to me if he is the best” (“Uma pessoa são dez mil para mim se ela é a melhor”). Possui também um magnífico solo de guitarra+baixo.  

 7.      A Viver Se Aprende Vivendo

 É uma das minhas favoritas do álbum, criada a partir de um riff que havia criado ainda em 2018 e que veio a se tornar a base do refrão. Portanto, foi criada a partir do segundo refrão. As estrofes e o primeiro refrão vieram depois. A base musical das estrofes foi criada para lembrar um reggae, ritmo o qual não componho tanto quanto ouço — e ouço, basicamente, a partir do gênio Bob Marley a quem presto, aqui, minhas singelas homenagens. Possui estrofes longas com longas linhas melódicas descendentes. Aqui canta o aprendiz num rito de passagem à sua maestria.

 8.      XXX

 É um rock jazzeado, originalmente pensado para ser uma de minhas “bossas”, tal “Das Tripas, Coração” (“Cave Musicam”, 2018), que aprendi a compor ouvindo os tropicalistas e Tom Jobim, que muito me agrada. Tentei fazer uma espécie, vá lá, de “walking bass”. O título é a minha idade corrente em algarismos romanos e alude à maturidade que atingi a partir das experiências destes últimos pares de anos. Para o arranjo, me utilizo do estratagema alcunhado de “sinfonia de guitarras” que desenvolvi primeiramente em “Lívido” (2009) e me utilizo vez ou outra em alguma canção desde então. É das poucas canções do álbum que passeia por todas as notas, de dó (em escala mais baixa) a dó (em escala mais alta), utilizando de acordes pouco convencionais, como diminutos e inversões. Musicalmente, é a mais rica do álbum.

 9.      Cornucópia

 Foi criada para ser um baião. Inicialmente, o riff da estrofe, origem da canção, foi criado em sol (G), porém, pensando em gravá-la com a participação de uma viola caipira (o que findou não ocorrendo até então), mudei para mi (E), para criar ressonância maior com o corpo acústico do instrumento. A letra é metalinguística e fala do meu instinto criativo, da minha capacidade de criar canções e da importância de tal virtude para mim. Até o primeiro refrão a canção é mormente acústica, com violões fazendo a sua base até que ele cria uma explosão sonora com a participação da guitarra, baixo, bateria e teclados que a elevam a um patamar de um “baioque” supersônico. Ao fim da canção há um solo de guitarra invertido, finalizando a canção de modo psicodélico. É mais uma das homenagens que rendo à rica musicalidade brasileira, especialmente a nordestina, de que mais gosto. Por longos anos fui incapaz de ouvir samba-canção e bossa-nova. O baião sempre me foi mais acessível. Cito como referências: Tom Zé, Alceu Valença e Luiz Gonzaga. Por fim, cornucópia é um símbolo de abundância e fertilidade, motivo de muitos quadros de natureza morta dentre os quais um que eu via no apartamento da minha vó quando criança.

 10.  Torre do Silêncio

 Foi criada para ser uma música inteiramente composta de sons eletrônicos (bateria e teclados), lembrando o arranjo hegemônico presente na obra “Indizível” (2012). O projeto do audacity desta canção, inclusive, tem origem no projeto de “Benefício da Dúvida” (“Indizível”, 2012). No estribilho anterior ao refrão me utilizo de um ritmo dividido em quatro tempos de sete micro-tempos, já utilizado no fim de “Liebesliede” (“Endemônio”, 2017). Por fim, acabei colocando guitarras nos momentos epifânicos da canção, quando subo o tom de ré (D) para mi (E). Assim, faço referência aos artistas indies e de música eletrônica que foram influências diretas sobre mim, como MGMT e Chemical Brothers. A letra é baseada na história do Zaratustra histórico, que teria vivido em algum lugar da Pérsia antiga. Isso se mostra nos mitos sobre seu nascimento, sobre o abandono de sua pátria na qual havia um lago, etc. Tomo como símbolo para mim mesmo e meu “abandono” por longos anos do lago da minha pátria, o Paranoá, para onde retornei apenas aos 18 anos. É uma canção que representa uma dietética de como quero viver a vida e mesmo de como quero morrer: Torre do silêncio é o espaço dedicado ao depósito dos restos mortais dos zoroastrianos, entregues ao sol e às aves de rapina, até tornarem-se pó que é, em definitivo, deitado no fundo de mares e lagos. Na epifania, me utilizo de falsete para atingir uma nota mais alta, signo do esforço de elevação, exercício que constantemente realizo em vida, como quero ser lembrado na morte.

Estão aqui registradas estas minhas verdades! Carpe diem, amigos! Cave musicam, irmãos! 

[Juliano Berko, Outubro de 2019]

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