Ontem à noite findei a leitura do "Humano, Demasiado Humano II" - que me acompanhara desde setembro em algumas descidas ao Hades e outras visões intranquilas -, uma compilação de "Opiniões e Sentenças Diversas" (em outras traduções: "Miscelânea de Opiniões e Sentenças"), publicado em 1879; e "O Andarilho e Sua Sombra", publicado em 1880. Em 1886, Nietzsche, na reedição de suas obras anteriores, quando escreve novos prefácios - que são parte importante da leitura de tais obras desde então e para sempre -, adjunta os dois conjuntos de aforismos, que antes foram publicados como apêndices ao "Humano, Demasiado Humano", em uma única peça.
O livro divide-se apenas entre as duas partes; dentro de cada uma o fluxo de temas diversos é a regra, apesar de ser possível identificar conjuntos de aforismos que tratam dos mesmos assuntos. Em "O.&S.D." há uma explícita continuação das ideias do livro anterior, "HDH".
Algumas passagens que me foram memoráveis: os comentários acerca da música de Beethoven - aquele incrível exercício poético de vislumbrar um Beethoven ressuscitado, assombrado ao ouvir sua obra executada pelos mestres póstumos ("Os vivos têm razão. Tenham razão e me deixem voltar para baixo."); outros punhados de ideias e metáforas que acenavam ao Zaratustra e que viriam a ser utilizadas na sua constituição; dois aforismos referentes ao "Hades" - esse lugar sombrio da nossa própria psique - o "deixando no Hades" - particularmente assustador para mim naquele momento - tivesse eu mesmo lido-o dois ou três dias antes, não teria tentado levar à superfície um cadáver putrefeito que por lá encontrei, no fundo de mim mesmo... E disso não faço um arrependimento, uma penitência, pelo contrário, é apenas a constatação de um engano, algo que sujava a água do meu poço, e que logo foi remediado: bem o fiz e igualmente ao, levando-o à superfície, reconhecer sob a luz da consciência o aspecto asqueroso e terrível daquela figura, deixando-o descansar e apodrecer na margem do meu mar, fora das minhas águas - para onde o lancei com um só golpe - aqui fala o meu orgulho! -; e a "descida ao Hades" - aqui Nietzsche e eu compartilhamos do júbilo da existência que só pode vir a ser em nós mesmos com a visão do mais terrível que há na vida... para tal, é preciso ser forte e saber superar a visão de horror e a experiência da mais terrível e lancinante dor. Ah! Os vivos, os hodiernos... como parecem pálidos, ávidos de vida! Enquanto que, para mim, esse alemão morto há 115 anos parece tão inescapavelmente vivaz, uma inoculação contra a qual não há nada que a neutralize, uma injeção de vontade de afirmar a mim mesmo.
Matei alguns carneiros - e mais - meu próprio sangue verti para poder superar essa fase. Chegamos então ao crepuscular "O Andarilho e Sua Sombra" (preciso disfarçar que foi daí que assimilei a forma para escrever o meu próprio diálogo com minha sombra? Todavia, é um expediente belíssimo e muito presente já nos textos da antiguidade clássica - de Platão ("A República") a Esquilo ("Prometeu Acorrentado"): todos os pelos do meu corpo se eriçaram com o diálogo da abertura entre o andarilho e a sombra... quem não experimentaria essa resposta fisiológica? Quem não tem espírito, deveras.
Daí me recordo agora das críticas à doutrina da abolição da propriedade - que Nietzsche identifica ser uma equívoca proposta política fruto da má interpretação da natureza humana (uma visão binária, dual, que identifica a oposição frontal entre "bem" e "mal", contra a qual a obra inteira de Nietzsche dá testemunho contrário). Para ele, não é necessário ou preciso que se acabe com a propriedade da terra produtiva, mas que não se permitam liberdades econômicas para produzir facilmente grandes fortunas (exemplo que ele mesmo dá: atividades financeiras) ou para não produzir absolutamente nada e viver na miséria absoluta - que gera revolta e violência - aqui fala uma razoável voz radicalmente social-democrata (e não me refiro à experiência histórica da social-democracia: a covardia encampada na política). Em que mundo vivemos hoje senão naquele exatamente o oposto desse? Impérios financeiros dominam basicamente todas as demais atividades econômicas por sobre toda a face da Terra, e uma crescente parte da humanidade experimenta na vida a pobreza mais absoluta... contra toda a magnífica técnica desenvolvida pela humanidade no seu caminho para a luz do conhecimento, a nossa pobreza de espírito depõe contra o nosso devir histórico.
Daí me recordo agora das críticas à doutrina da abolição da propriedade - que Nietzsche identifica ser uma equívoca proposta política fruto da má interpretação da natureza humana (uma visão binária, dual, que identifica a oposição frontal entre "bem" e "mal", contra a qual a obra inteira de Nietzsche dá testemunho contrário). Para ele, não é necessário ou preciso que se acabe com a propriedade da terra produtiva, mas que não se permitam liberdades econômicas para produzir facilmente grandes fortunas (exemplo que ele mesmo dá: atividades financeiras) ou para não produzir absolutamente nada e viver na miséria absoluta - que gera revolta e violência - aqui fala uma razoável voz radicalmente social-democrata (e não me refiro à experiência histórica da social-democracia: a covardia encampada na política). Em que mundo vivemos hoje senão naquele exatamente o oposto desse? Impérios financeiros dominam basicamente todas as demais atividades econômicas por sobre toda a face da Terra, e uma crescente parte da humanidade experimenta na vida a pobreza mais absoluta... contra toda a magnífica técnica desenvolvida pela humanidade no seu caminho para a luz do conhecimento, a nossa pobreza de espírito depõe contra o nosso devir histórico.
Ah, os marxistas ortodoxos que, ouvindo a voz de Nietzsche, escutam a reação... estes canalhas que nem mesmo a areia do deserto deveria dar ouvidos!
Por fim, aquela belíssima mensagem de depuração da afecção em si mesmo, a busca da "boa vontade" na vida; o alegrar-se com tudo - tendo como pano de fundo a alegria com o conhecimento, proporcionado pelas mais diversas experiências. É a senha de ouro que liberta o homem das suas cadeias para, novamente, percorrer - mais ainda: desbravar - os mais luminosos caminhos que podem haver para a vida na Terra - percorrendo-o junto a sua sombra, a única testemunha possível da felicidade perene que daí advém.
Por fim, aquela belíssima mensagem de depuração da afecção em si mesmo, a busca da "boa vontade" na vida; o alegrar-se com tudo - tendo como pano de fundo a alegria com o conhecimento, proporcionado pelas mais diversas experiências. É a senha de ouro que liberta o homem das suas cadeias para, novamente, percorrer - mais ainda: desbravar - os mais luminosos caminhos que podem haver para a vida na Terra - percorrendo-o junto a sua sombra, a única testemunha possível da felicidade perene que daí advém.
Um sentido de gratidão não me escapa agora, que me lanço na trilogia final da obra Nietzscheana: "Além do Bem e do Mal" + "Genealogia da Moral" + "Crespúsculo dos Ídolos". Ao fim deste ano - que foi o mais pesado da minha vida inteira até aqui - não posso deixar de agradecer à vida por me permitir escalar essa montanha - e haja fôlego e paciência! - e, por fim, ter nas minhas retinas a mais luminosa e tranquila visão do existir. Recobrei a alegria comigo mesmo e com a vida. Atravesso o portal deste dezembro mais forte e seguro do que quando entrei no portal do janeiro passado - e quem sabe para onde o próximo janeiro poderá me levar?! Forte e tranquilo para lá quero seguir; cheio de amor, desde sempre, amor à vida e amor ao meu destino.
"A sombra: De tudo que disseste, nada me agradou mais do que uma promessa: vocês querem ser novamente bons vizinhos das coisas mais próximas. Isso será bom também para nós, pobres sombras. Pois, admite-o, até agora vocês tiveram prazer em nos caluniar.
O andarilho: Caluniar? Mas por que vocês nunca se defenderam? Tinham nossos ouvidos bem próximos, afinal.
A sombra: Achamos que estávamos demasiado próximas para poder falar de nós mesmas.
O andarilho: Delicadas, muito delicadas! Ah, vocês, sombras, são "pessoas melhores" do que nós, já percebo.
A sombra: No entanto, vocês nos chamam de "importunas" - a nós, que ao menos uma coisa sabemos fazer: calar e esperar - um inglês não faz isso melhor. É verdade, com muita frequência nos vêem seguindo os homens, mas não como suas servas. Quando o homem evita a luz, nós evitamos o homem: pelo menos até aí vai a nossa liberdade.
O andarilho: Ah, a luz se esquiva bem mais frequentemente do homem, e então vocês também o deixam.
A sombra: Com frequência me foi doloroso te deixar: para mim, que sou ávida de saber, há muita coisa que permanece obscura no homem, pois não posso estar sempre com ele. Ao preço do conhecimento cabal do homem, de bom grado seria eu tua escrava.
O andarilho: Mas sabes tu, sei eu por acaso, se com isso não passarias repentinamente de escrava a senhora? Ou continuarias escrava, mas, desprezando teu senhor, levarias uma vida de nojo e humilhação? Fiquemos os dois satisfeitos com a liberdade que te coube - a ti e a mim! Pois a visão de um cativo me estragaria as maiores alegrias; a melhor coisa me seria repugnante, se alguém tivesse que partilhá-la comigo - não quero escravos ao meu redor. Por isso também não gosto do cão, o indolente parasita que agita a cauda, que apenas como servo dos homens se tornou "canino", e que eles costumam louvar como sendo fiel ao senhor, dizendo que o acompanha como sua...
A sombra: "Como sua sombra", é o que dizem. Talvez eu hoje te acompanhe já por tempo demais? Foi o dia mais longo, mas estamos quase no fim dele, tem paciência um pouco mais. A relva está úmida, estou tirintando.
O andarilho: Oh, já é tempo de nos separarmos? E eu tinha que te magoar ainda; vi que ficaste mais sombria.
A sombra: Eu enrubesci, na cor que me é possível. Ocorreu-me que muitas vezes fiquei a teus pés como um cão, e que tu, então -
O andarilho: Eu não poderia rapidamente fazer algo para te agradar? Não tens nenhum desejo?
A sombra: Nenhum, exceto, talvez, o que o "cão" filosófico desejou do grande Alexandre: sai um pouco da frente do sol, está muito frio para mim.
O andarilho: Que devo fazer?
A sombra: Anda sob esses pinheiros e olha para as montanhas em torno; o sol se põe.
O andarilho: Onde estás? Onde estás?"
[Nietzsche, "O Andarilho e Sua Sombra", diálogo final, 1880]
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