segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

"Coração Atado, Espírito Livre"

Há pouco ouvi uma música impecável do ponto de vista da produção; um funk(-rock?) carregado de teclados e sons sintéticos, algo que lembrava os anos 1980; uma variação rítmica impressionante para apenas quatro minutos, contra a qual a nenhum ser humano é dado evitar a sedução da sua cinestesia, colocando-se em movimento; já a havia ouvido antes num evento no CEF 14, mas não conhecia o seu nome: "Uptown Funk", de um músico judeu, britânico radicado em New York, Mark Ronson. A monocórdica linha do baixo e algo do seu estilo rítmico me lembrou "The Call Up", do Clash. Fui conferir the lyrics...

Como pude me permitir fazer uma referência supostamente tão elogiosa a tal canção, sendo que, do ponto de vista do conteúdo simbólico das letras, ela representa, talvez, o mais absoluto lixo produzido pela espécie humana? Pois, era eu imitando o raciocínio do rebanho. Mark Ronson: um playboy ocidental, judeu conservador - provavelmente a variação mais asquerosa da espécie humana por sobre a face dessa cansada Terra, que produz a assim chamada música pop - esse alimento para o espírito do rebanho... Nietzsche ficaria horrorizado: a crítica que ele faz ao espírito democrático - algo que hoje, envergonhados que nos tornamos, chamaríamos de "crítica da cultura de massa" - é assustadoramente certeira. O "povo" não consegue ir muito longe, atrapalhado que fica ao apoiar com os quatro membros no chão... não aprenderam a ficar de pé e correr - que pena!

A boa música - a música que é, ao mesmo tempo, atestado, testemunho e instrumento de elevação do espírito - deverá, sempre, ser a música que não entra nos ouvidos do rebanho. Eles teriam que tê-los destroçados, aprendendo a ouvi-la com os olhos...

Poucas vezes vi na vida uma mulher tão bonita. Absolutamente tudo nela era impecável; a natureza cuidou de superar a minha imaginação em todos os mínimos detalhes - com efeito, a cada novo olhar lançado, das mais diferentes perspectivas, maravilha-me com uma nova beleza descoberta. Todavia, quando fui aproximar-me do conteúdo social que conferia humanidade àquela sublime experiência estética... indescritível fora a minha frustração. 

Quem nunca passou por experiência semelhante? Comentando-a, o rebanho me diria: "Bastava ignorá-la nos aspectos mais asquerosos, fingir algum interesse nos seus vícios e pobrezas de espírito - pois, o nosso interesse é bem outro..."; "Não era preciso ter nenhuma espécie - ainda que fantasiosa - de comunhão de ideais, nossa atração por ela seria física, por ela bateria mais forte o nosso coração...". Assim me diria o cínico rebanho.

Também o faria quanto à música: "Basta-nos sentir a batida - feel the beat! -, ouvir a música com o coração..."; "Não podemos levar tudo tão à sério... é só música." - assim escorreriam das suas bocas, em meio a bile viscosa, as palavras do rebanho. Pois, os escravos, o rebanho, dissociados que são, são capazes de dissociar a vida; quebrantar a realidade e engolir cacos de vidro sem sangrar suas entranhas - eles os moem, deveras. Tomam das pessoas e das coisas apenas aquilo que lhes bastam - não sem um elevado grau de violência: pois eles se vingam de tudo aquilo que os obriga a dissociar; no fundo, os faz lembrar que eles mesmos, não fosse por sua dissociação psicológica, não suportariam a existência absolutamente desprezível a que estão condenados.

E não é uma canção perfeita um ideal tal qual a mulher perfeita?

Nós - os que, ao mirar a imperfeição, sabemos vislumbrar o conteúdo que a preencha (e este conteúdo é um vir-a-ser!); nós, os que somos por inteiro, não meras máquinas sob a égide de uma vontade externa, pois, não somos escravos, não comemos vidro, pelo contrário, devoramos integralmente um espelho - não queremos - não esperamos! - das mulheres, da música, da vida, enfim, algo que enfastie nossos sentidos, que faça salivar os cães selvagens da carruagem das nossas paixões, e faça com que o nosso coração se arraste para longe do nosso cérebro - trajetória ao fim da qual terminaremos esfolados, tanto nosso coração quanto nós mesmos, o espírito. Qualquer evento ou coisa que atente contra este princípio acende as tochas da nossa desconfiança - assim o quer o nosso espírito, que preconiza a liberdade ante a segurança. E é por isso mesmo que medimos milimetricamente o quanto soltar as nossas rédeas - afinal, quer aventura maior para o nosso orgulho, há desafio maior para a apreciação estética da vida na Terra do que remendar os cacos e criar beleza de um coração imperfeito?

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"Coração atado, espírito livre - Quando se amarra e se mantém preso o próprio coração, pode-se dar ao espírito muitas liberdades: já o disse uma vez. Mas não me acreditam, a menos que já o saibam."

"Uma vez tomada a decisão, fechar os ouvidos mesmo ao melhor argumento contrário: sinal do caráter forte. Portanto, uma ocasional vontade de estupidez."

"As grandes épocas da nossa vida são aquelas em que temos a coragem de rebatizar nosso lado mau de nosso lado melhor."

[Aforismos 87, 107 e 116, "Além do Bem e do Mal", capítulo 4º, "Máximas e Interlúdios", Nietzsche.]

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