Ontem à noite assisti ao "O Guia Pervertido da Ideologia", filme de Žižek com direção de Sophie Fiennes.
Ao longo de todo o documentário ele tece comentários sobre a forma, a estética como uma mensagem em si mesma - "pré ideológica" -, apesar do discurso que lhe traduz em ideologia. Citou a 9º sinfonia de Beethoven, que foi e é usada por todo mundo: dos nazistas aos democratas cristãos; dos comunistas aos democratas, em diversos contextos, como "pacote" de sua ideologia.
Outra ideia que me chamou atenção foi à referência ao "Grande Outro", uma instituição que atua sobre a psique de forma autoritária, impositiva, para a qual nós devemos prestar contas, nos justificar, nos confessar, que nos redime ou nos condena, etc. Todavia, ele, como psicanalista, coloca que essa instituição, objetivamente, não existe - somos nós, com nossas necessidades psicológicas, nossas fraquezas, dúvidas, dificuldades em afirmar nossas vontades que a criamos.
Para o Žižek, a grande mensagem do próprio Cristo crucificado foi essa: "Meu Deus, por que me abandonaste?", dentre outras referências ao Livro de Jó e às falas de Jesus. O que o leva, Žižek, a afirmar que apenas através do Cristo é possível criar-se um legítimo ateu - isto é: alguém que afirma a inexistência de uma instituição maior do que nós mesmos, que impere sobre nossas vontades e escolhas. Em contraposição aos "ateus crentes", que negam o mito religioso, mas elegem outros elementos para ocupar o espaço do "Grande Outro": a evolução, a ciência, etc. - ou seja, uma visão 'desistoricizada' da crítica à religião, que não percebe que o mito existiu apenas para cumprir essa função psicológica, etc. O que se aproxima da ideia Nietzscheana de que "Deus está morto e fomos nós que o matamos!", de um deus enquanto um "imperador dos desejos", ser inaceitável na modernidade, etc. Não é novidade pra ninguém que o edifício milenar erigido pela Igreja Católica - e reformado pelos protestantes - guarda a mínima relação com a figura mítica de Jesus Cristo, propriamente. Inclusive, eu, que nunca tive uma educação religiosa formal, só pude ter alguma simpatia pela figura de Jesus, o Cristo, a partir das considerações duais de Nietzsche ("o mais nobre dos Judeus", em algum lugar do "Humano, Demasiado Humano", 1877). Mas não é sobre isso que quero falar aqui.
Há uma belíssima passagem do "Gaia Ciência" (1882): "Que são essas igrejas senão túmulos e monumentos fúnebres de deus?" Isso vai dialogar com a minha digressão a partir daqui.
Como vocês já devem saber, eu sou um artista muito antes de ser professor - e talvez até por isso eu exerça essa que é uma profissão cênica, fundamentalmente. Ao longo de 2013, minhas experiências pessoais foram projetadas para além de mim numa porção de músicas que juntei no álbum abaixo. É um conjunto de 10 canções carregadas de teclados sombrios; de canto sussurrado; um ou outro momento de gritos e de guitarras distorcidas; de cores escuras escolhidas para a arte do álbum; e - vejam só! - uma referência à canção "Infância na Cidade de Goiás" na foto da Igreja Matriz da cidade, que a gente havia tirado em uma das últimas viagens para lá.
Pois bem: este é o "invólucro" estético da minha mensagem, que não vem ao caso aqui. Como compositor amador - quero dizer: objetivamente, alguém que não domina conscientemente a psicoacústica, não possui estudo formal de composição, etc. -, essas escolhas estéticas são feitas inconscientemente. Eu estava consciente de que passava por uma depressão profunda, mas esses elementos não ficavam claros na hora de compor. O que quero dizer é: eu estava imerso na minha ideologia - tateando as paredes de um quarto escuro.
Refletindo sobre as colocações do Zizek, eu tive um insight luminoso, que me aterrorizou madrugada a dentro: nesse álbum eu estava realizando um funeral do meu "Grande Outro". Todos os elementos estéticos apontam para isso: a escuridão, a sobriedade, os teclados monocórdicos, as dissonâncias, os gritos de horror pela morte de um ente tão querido - a primeira faixa eu intitulei "Boa Morte"! Eu estava lamentando a percepção do meu inconsciente de que ele é, fundamentalmente "órfão e ateu" (li isso em alguma postagem do Bruno Cava, acho que sobre o curso do Anti-Édipo).
Há um outro aforismo interessantíssimo do "Opiniões e Sentenças Diversas" (1878) em que Nietzsche - que percebia a ideologia da forma estética, isso se vê em cada aforismo seu de crítica artística - comenta do uso póstumo da obra de Beethoven:
"A execução realmente "histórica" falaria de modo espectral para espectros. - Honramos os grandes artistas do passado não mediante o estéril receio que deixa cada palavra, cada nota exatamente como foram colocadas, mas por ativos esforços em ajudá-los a repetidamente voltar à vida. - É certo que, se imaginarmos Beethoven retornando subitamente e presenciando uma de suas obras na mais moderna forma de animação e refinamento nervoso, que contribui para a fama de nossos mestres de execução, ele provavelmente ficaria mudo por um bom tempo, hesitando se deveria erguer a mão para amaldiçoar ou para bendizer, mas talvez falasse, por fim: "Bem, isto não sou eu nem deixa de ser eu, é uma terceira coisa - também me parece algo certo, embora não o certo. Mas atentem vocês para o que fazer, já que vocês é que têm de ouvi-lo - e quem está vivo tem razão, como diz nosso Schiller. Então tenham razão e me deixem voltar para baixo". (Aforismo 126, "Arte do Passado e Alma do Presente")
Com o "Aeternum Phoenix", eu lancei um pacote ideológico em que lamentava a morte dos meus ditadores internos: o que só pode ser louvável se tomarmos um caminho de celebração por essa morte. Foi o que fiz no próprio álbum de 2013, no vigésimo minuto de "Phoenix Flight": "Cantei as canções que quis, lancei-me assim aos céus/Nas alturas fui feliz rasgando todo véu"; e em 2014 com o "Além de Mim", a minha mais elevada forma de júbilo na percepção dessa liberdade de espírito. No começo desse ano fiz o Iñaron, que tem um sentimento um tanto diverso do anterior; é muito recente, não me sinto em condições ainda de refletir sobre ele, mas é, sem dúvida, um ponto de desenvolvimento geral da minha estética.
Como o Žižek deixa claro no início do filme, libertar-se da ideologia dói, fere. Quem se apavorar diante dessa dor apegar-se-á à ideologia violentamente até o último espasmo dos nervos! De onde vem a força terrível para assassinar o monstro mentiroso que sustenta nossa ideologia e superar-se a si mesmo, afirmando a própria vontade? Como artista solitário e orgulhoso que sou, devo guardar meus segredos para a posteridade. Mas deixo uma dica: leiam o Zaratustra!
PS.:
A quem interessar possa - a trilogia dos álbuns de 2013/14/15:
Com o "Aeternum Phoenix", eu lancei um pacote ideológico em que lamentava a morte dos meus ditadores internos: o que só pode ser louvável se tomarmos um caminho de celebração por essa morte. Foi o que fiz no próprio álbum de 2013, no vigésimo minuto de "Phoenix Flight": "Cantei as canções que quis, lancei-me assim aos céus/Nas alturas fui feliz rasgando todo véu"; e em 2014 com o "Além de Mim", a minha mais elevada forma de júbilo na percepção dessa liberdade de espírito. No começo desse ano fiz o Iñaron, que tem um sentimento um tanto diverso do anterior; é muito recente, não me sinto em condições ainda de refletir sobre ele, mas é, sem dúvida, um ponto de desenvolvimento geral da minha estética.
Como o Žižek deixa claro no início do filme, libertar-se da ideologia dói, fere. Quem se apavorar diante dessa dor apegar-se-á à ideologia violentamente até o último espasmo dos nervos! De onde vem a força terrível para assassinar o monstro mentiroso que sustenta nossa ideologia e superar-se a si mesmo, afirmando a própria vontade? Como artista solitário e orgulhoso que sou, devo guardar meus segredos para a posteridade. Mas deixo uma dica: leiam o Zaratustra!
PS.:
A quem interessar possa - a trilogia dos álbuns de 2013/14/15:
- Iñaron
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