sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Apetite

Que visão intranquila do paraíso! Que cena tragicômica: o demente vôo deste pássaro com asas plúmbeas! Permanecesse no solo qual pavão, que exibe tranquilamente suas virtudes sem precisar mostrar-se naquilo que não sabe fazer! Porém, aquilo que tenho demais humano, a minha vaidade, me compele a alçar vôos. Me ataca o orgulho: viver tendo asas e não as usar. Como todo exercício, a prática determina o domínio da fortuna, o horizonte de possibilidades de sucesso e fracasso. Melhor sorte na próxima!

Pois bem: farejamo-nos, permitimos que o nosso aroma fosse degustado, porém, não nos deleitamos no nosso banquete. Talvez a sua imperturbada aparência me fosse por demais suave: eu, quem gosto de comida apimentada; ou ainda parecido doce, num momento da vida em que meu paladar, mais do que ter se acostumado, pede pelo amargo. Talvez o meu furioso apetite lhe tenha sido percebido como ofensivo: não me permitiria saborear com a devida medida o seu enternecido sabor. O que devo dizer, não sem profundo pesar, ser uma dolorosa calúnia contra os meus sentidos. Talvez o cheiro de sangue parecesse-lhe por demais asqueroso, terrível, talvez fosse até vegetariana... - eu, que carrego navalhas pra cortar minha própria carne e ofertá-lá crua, temperada com ervas ressequidas. Como abrir o apetite de quem tem aversão ao cheiro de sangue?

Aquelas pessoas com quem convivo em Brasília - que me perdoem a honestidade - me causam nojo. O seu gosto de isopor, de comida congelada, conservada para muito além do prazo que a natureza daria a qualquer alimento saudável, me enoja. Os concurseiros, vergados ao falacioso único caminho possível, analfabetos para qualquer coisa além dos editais; pior: os concursados, como cadáveres conservados em formol, desfilando como múmias ansiando por vida eterna: como me nutrir de gente dessa espécie? Não sou um inseto: eles que reviram o lixo e de qualquer resto podre fazem seu alimento!

Não quero ser confundido com outra coisa que não um leão, uma serpente ou uma ave de rapina: uma soberana confiança de si, um profundo desprezo por aquilo que não lhe serve de alimento, uma espreita e um bote certeiro, um ritual que enobrece a sua refeição.

Foi isso a vida? Ótimo, mais outras várias vezes!

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