sexta-feira, 4 de setembro de 2015

O Primeiro Filho

Durante milênios o poder de uma casta patriarcal era passado do pai ao filho primogênito e com ele as propriedades, demais benefícios econômicos, prestígio social, etc. Até muito recentemente, esse protocolo estava previsto no nosso sistema jurídico, fundamentado em práticas sociais tão antigas quanto legitimadas. Com o declínio das famílias patriarcais, que foram minguando ao longo das últimas décadas acompanhando o ritmo das transformações econômicas da população com a industrialização, o primeiro filho perde aqueles privilégios.

Hoje, entre as famílias hodiernas, os primeiros filhos e filhas - as mulheres, talvez, pelo hábito da forçosa submissão à família/marido, ainda mais - experimentam quase sempre afetos negativos do peso do mundo carregado pelos pais.
Os pais quase sempre querem castigar o filho por ele fazê-los carregar tanto peso e sempre lhe jogam na cara, com ódio, que o mundo é pesado! Quando o seu segundo filho vem logo, não se diferencia em muito o tratamento... Ambos os irmãos experimentam a vergonha de fazer o mundo pesar por sobre as costas dos pais - talvez o mais velho sinta-a mais. E em toda a sua experiência no mundo economizarão sempre a sua vontade, pra não correrem o risco de serem percebidos pela sociedade como mais peso - que recairia nas costas dos pais e, por fim, em mais raiva contra eles mesmos. Pois, a vergonha é o afeto mais venenoso.
Quando é o caso do segundo filho tardar, o primeiro experimenta a culpa dos pais pelo peso do mundo. Afinal, pela sua lógica, carregar parte do peso, contribuindo para cuidar do irmão ou irmã, diminui a sua vergonha ante os pais. E em tudo o que fizer irá sempre empenhar a sua servitude, aguardando o reconhecimento dos pais - o que, supostamente, lhe daria a liberdade da vontade... A servidão nesse caso é o hábito mais venenoso.

Já aqui temos um pai tal qual Atlas: não é o mundo, mas o universo inteiro que pesa por sobre suas costas e ele sabe que é esse o preço que se paga por aplicar na vida a sua vontade. Portanto, o afeto que o mobiliza é o orgulho. Nos seus filhos, que serão frutos de um profundo amor-próprio, quererá sempre a pureza da vontade: não irá querer castrar nenhuma pulsão, por mais inconveniente que seja, sob a ótica do trabalhador-40-horas-por-semana, dormir com a casa em desordem - brinquedos espalhados, louça por lavar, etc. Sempre que puder transmitirá aos filhos o seu orgulho e os fará brincar com o peso do mundo sobre as costas, pois, assim, crescerá nos filhos a força - a força da vontade em efetivar-se a si mesma, a potência! Neste sentido, propiciará que o gérmen da autonomia brote e gere seus próprios frutos e flores. Não espera nada de seus filhos - nem que eles compartilhem do peso sobre suas costas, nem que eles se envergonhem dele, por vaidade venenosa... -, pois, quer apenas dar-lhes seu amor... O amor nunca quer nada em troca. Abençoados sejam os filhos de tais forças!

 

Mas e se fomos bombardeados de afetos tristes desde sempre, o que fazer? Nada que uma dieta equilibrada e exercícios físicos não possam ajudar, como suporte de um projeto de vida, com objetivo sempre de ampliar a nossa potência de vontade. Lembrando que, tal como o álcool deve ser evitado com frequência, existem pessoas tóxicas, que a prudência nos recomenda manter distância. Se as circunstâncias não nos permitem a absoluta extirpação de determinadas pessoas do nosso convívio, estabeleçamos uma relação o mais independente possível, sem descargas de ainda mais afetos tristes. Talvez até por isso foram criados o dia das mães e o dia dos pais!

3 comentários:

Euclides disse...

As relações interpessoais são em geral muito conflitantes. E deve ser assim mesmo para que haja o aprimoramento e o crescimento de cada um. Afinal, é dos conflitos que surgem as soluções. Rsrs.
Penso no entanto, Juliano, que é um pouco complicado relativizar experiências, que podem ser muito pessoais. Nesse sentido, uma série de outras análises poderiam ser formuladas. E eu já fiquei pensando nas experiências de minha própria família. Acho que meu pai e minha mãe carregam um forte sentimento de culpa por um acidente ocorrido com minha irmã mais velha. ( Ela ficou sozinha em casa e pôs fogo na roupa. Ficou com fortes queimaduras no corpo). Hoje, quase 50 anos depois, eles não gostam de tocar nesse assunto.
Enfim, acho que divaguei muito somente para dizer que cada um de nós carregamos nossas marcas e cicatrizes, às vezes até feridas, frutos da peleja diária no seio da família.
Pra finalizar, quero elogiar a sua escrita e o entrelaçamento de ideias. O texto ficou muito bom.

Juliano Berko disse...

Eu não quis circunscrever todo o universo de experiências da paternidade com o meu texto, Euclides. Quero deixar isso claro. Com certeza, cada um de nós passa por uma experiência diversa. Ali no texto quis inscrever algumas impressões minhas, não apenas de vivência, mas, sobretudo, de observações.
Não posso divergir quanto ao que você coloca sobre os conflitos, porque isso é um dado da realidade objetiva inegável. Mas a forma com que lidamos, cada pessoa, com nossos conflitos determina muito daquilo que virá a ser nosso 'eu'.

Juliano Berko disse...

E obrigado pelo comentário e pela visita! Volte sempre!