sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Nietzsche, Um Comunista

Ou - respeitando a memória de Nietzsche que rechaçaria qualquer rótulo (com toda a razão e não é essa a minha intenção) - porque sou um nietzscheano de esquerda

Em toda a sua obra, do "Humano, Demasiado Humano" (1878) a "O Anticristo" (1889), Nietzsche explicita diversas vezes o seu anti-socialismo. Ele capta nas sutilezas dos discursos e práticas socialistas 1) a apologia a um poder totalitário, centralizador; 2) afetos negativos - vingança, inveja, etc. - que denotavam impotência, o mal dos escravos; 3) e, de modo geral, equiparava os socialistas aos burgueses no âmbito da moral - disputavam ambos o mesmo campo de valores (sobre este aspecto, no início do "Aurora" [1881] há uma breve referência aos camaradas anarquistas). Os burgueses seriam os escravos que se rebelaram primeiro, seguidos no calcanhar pelo proletariado.

A despeito de diversos aforismos que se debruçam sobre estas questões, principalmente no livro de 1878, em toda a sua obra não há uma crítica, nem uma única palavra sequer acerca das ideias de Marx, o teórico que passa ao século seguinte como fundador do assim chamado socialismo científico - um silêncio ensurdecedor.

Aquele que sabe ler as pessoas percebe que, muitas vezes, quanto aquilo em que elas calam, elas mais falam. A proposta de tresvaloração dos valores de Nietzsche não me parece muito distante, objetivamente, da proposta de superação das dicotomias da sociedade burguesa - capital (burguesia) x trabalho (proletariado) - em Marx. Apesar de colocadas de formas diferentes, os horizontes delineados pelas duas perspectivas reservam-se similaridades. Nietzsche vem pelo debate ideal, isto é, moral; enquanto Marx pelo debate material, ou seja, econômico.

O problema do marxismo é que ele se assemelha a uma religião, com cisma do oriente e tudo o mais. Contra todo o senso comum que se apregoou ao longo do século passado nos círculos comunistas, o ideal marxiano - com a liberdade que me permito para interpretá-lo e criticar todo um século de lutas - é de superar aquela dicotomia a partir do proletariado, em um processo histórico - a "Revolução Comunista" - que depura essa classe, quando então, será abolido o trabalho, que é o núcleo do processo de gênese do capital - forma de relação entre as coisas e pessoas com objetivo de lucro, simplificadamente. Deste modo, não haveria mais proletariado enquanto classe - esta só existe em oposição à burguesia. A Revolução Comunista superaria as contradições entre burguesia e proletariado. Mais ainda e em outras palavras: sob o comunismo não existiria o proletariado. O ideal da "Ditadura do Proletariado" é uma interpretação que vem a ser encampada sem o menor pudor a partir de Lênin e a fundação do marxismo-leninismo, que ainda é levado a sério por algumas tarântulas perdidas por entre as estantes de bibliotecas empoeiradas...

Voltando à Nietzsche, para ele há ao longo da história a luta entre duas moralidades: a nobre e a escrava. De forma resumida, ele elogia todos os ideais nobres - força, beleza, inteligência, altivez, gratidão, etc. - enquanto desdenha dos ideais escravos - igualdade (identificada com igualitarismo, a supressão das singularidades), humildade (identificada com a mediocridade, a supressão do esforço de superação), etc. Na trilogia "Além do Bem e do Mal" (1886), "Genealogia da Moral" (1886) e "Crepúsculo dos Ídolos" (1887) ele certamente se aprofunda nestes temas, mas não posso comentá-los, pois, ainda não os li.

Em todo o caso, no "Ecce Homo" (1888) há várias passagens que sugerem que Nietzsche não era um conservador - justificador do status quo - ou mesmo um romântico - restaurador da ordem antiga -, mas que o seu elogio se dava à uma ideia de nobreza de caráter. A passagem sobre o "jovem príncipe" do I Reich a quem ele não daria o privilégio de lustrar suas botas é a que melhor ilustra esta interpretação. Há uma bela descrição do filósofo Epiteto - nascido escravo - no "Aurora" que, com determinada reverência, corrobora novamente com aquela visão. Todo leitor nietzscheano honesto sabe disso.

De modo que, para mim, quando Nietzsche nos falava do seu anti-socialismo não é preciso muito esforço para lembrar que o socialismo foi jogado na lama por muitos de seus partidários, o que nos acostumamos chamar de social-democracia. É só lembrar que temos no Brasil o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) e o Partido Socialista Brasileiro (PSB, fundado a partir de uma dissidência da antiga UDN) que eu me declaro anti-socialista sem muito esforço. É reconhecer que as experiências comunistas do século XX - sem julgar moralmente a história, que é soberana - encontraram rapidamente os seus limites circunscritos dentro de si mesmas, e que não devem se repetir. Afinal, seria ou tragédia ou farsa. Para a construção do futuro em comum deverão ser forjados novos instrumentos a partir das práticas dentro das questões latentes da humanidade hoje e em cada recanto do mundo.

Sobre a despeitosa e absolutamente infundada associação entre Nietzsche e o nazismo, deixo um silêncio tumular sob o qual devem revirarem-se os restos mortais de sua irmã, aquela cidadã de bem, boa cristã, quem difamou o filósofo, editando canalhices postumamente e posando ao lado do Führer.

Até aqui - com as leituras do "Nascimento da Tragédia" (1872), "H, D H", "Aurora", "A Gaia Ciência" (1882), "Assim Falou Zaratustra" (1883-5), "Ecce Homo" (1888) e "O Anticristo" (1889) - podemos dizer com segurança - e alguma liberdade poética - que o esforço que Nietzsche fez, em vida, para que suas contribuições fossem reconhecidas levou-o à loucura. Um século ainda é muito pouco para fazer-lhe as devidas honras. Para quem não tem a digestão lenta, capaz de degradar longas cadeias de moléculas de nutrientes, não se recomenda sua leitura. Quem não tem a casca grossa, que não passe perto de sua retórica dilacerante!

Ambas as perspectivas, a do comunismo marxiano e a nietzscheana, são perspectivas para/de ação: a revolução e a tresvaloração. Que todo o esforço de inação, de refrear a reflexão, a crítica, a imaginação e a produção do novo sejam atropeladas pelo trem da história, pela potência da nossa vontade que se amplia! Nietzsche foi caminhando por entre montanhas e praias desertas; Marx por entre fábricas e vilas operárias... não importa mais: a globalização globalitarista ampliou forçosamente nossa superfície de contato. Não nos adianta mais reclamar sozinhos, sectários; de nada adianta ~o povo de humanas ir fazer miçanga~, os intelectuais escalarem suas Torres de Marfim, os corporativistas aparelharem seus sindicatos e reuniões de negociação à portas fechadas... estamos todos conectados numa rede de fluxos de valores - a evolução tecnopolítica do capital financeiro - contra a qual apenas a luta em comum pode fazer frente; para tanto, faz-se necessário um novo mapa desse espaço terrível - uma hipergeografia em que nos reconheçamos enquanto tal. Reconhecer-se em comum: o eterno retorno da diferença.

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