segunda-feira, 2 de novembro de 2015

A Minha Coragem

Por vários momentos ao longo deste ano eu estive sob uma sombra tenebrosa - embora visse em volta o dia quase sempre luminoso; uma vida quase sempre suave e doce - tanto que tomo café sem açúcar, para não arruinar-me o estômago. Lançando o olhar aos céus, eu percebia uma silhueta contra o sol, quase como um eclipse: algo como um anjo ou um demônio de largas asas - pretas como a mais alta noite; podia jurar sentir o movimento do ar quando passava suas asas por sobre minha cabeça - deveras, podia ouvi-las, como se ouve a natureza inteira celebrando a vida numa noite de verão. Ele voltou há pouco mais de uma semana, me acordando de um sonho, quando tive uma inquieta manhã de sábado. Tem sido meu hóspede mal-educado desde então: entrou sem pedir licença na minha casa. Há exatas duas noites ele dorme no quarto comigo, vigiando meu sono. Nesta noite sentou-se na cama ao meu lado. Hesitei, contudo, superando meu pavor, dirigi-lhe a palavra. Segue então a nossa conversa: 

J: Quê fazes aqui?! Por que não me visitara antes este ano? Por acaso faltara-lhe coragem?

A/D: Quê sabes tu da coragem? Mal conseguiste abrir a boca para me dirigir a palavra. Pois saibas apenas que ainda não era a hora de falar-te. Ainda não eras maduro o suficiente. Quis ver-te em febre, quis ver tua força, quis ver se ainda te acendem as flechas do desejo.

J: Pois bem! Já estou caindo de podre, já fervi de febre, já sou quase osso e músculos com o mínimo de gordura - o melhor do corpo que tive até aqui em minha vida -, e minhas flechas do desejo... com elas incendiei o horizonte! Poderias fazer-me o favor de me levar agora?! 

A/D: Não. Ainda não é a hora de levar-te comigo. És pesado demais. Tua vaidade plúmbea não me permitiria arrastar-te para outro lugar que não o Tártaro - não és capaz de destilar outra coisa que não rios de rancor? Quero ver-te leve ainda. Pois, eu sou a tua coragem. Eu vim te ensinar a te elevar-te a ti mesmo, nem que para isso precise me utilizar dos espasmos musculares do pavor que eu te causo! 

J: Elevar-me?! Para onde mais devo subir? Morei por dois anos em uma caverna no quinto andar de uma montanha no Guará... De lá saí, pois, já havia me enfastiado de um ar tão puro e de uma solitude tão terrível! Quê posso eu querer nas alturas?! A concupiscência me envergonharia! A solidão me é agradável, mas o abandono e o desprezo... estes são impossíveis de se superar!

A/D: Confundes a altura com a concupiscência? E te envergonharias porque és, em segredo, um concupiscente! Pois, então deves afundar nos teus afazeres e distrações e deixar-me em paz! Não mais me chame do lugar de onde vim! Que o abandono te faça fumegar e te entorte - quem sabe não adquirirás com isso a direção certa para tuas flechas - se é que serás capaz de ainda guardar algumas contigo!

J: De qualquer coisa que encontro nas minhas caminhadas na natureza, faço minhas flechas - ainda sei, de alguma forma, honrar o sentido da Terra. Infelizmente, preciso de ti! Meus deveres oprimem meu peito de maneira terrível. De quê pode ser feito tal coração, que ainda resiste a uma pressão que esmagaria três quartos da humanidade?! E, em todo o caso, suspeito de que aqui não mais haja um coração, senão algo que se assemelhe a uma tâmara seca: doce e suave, contudo, inerte... Minhas obras me obrigam a permanecer vivo. Esta é, hoje, a obrigação mais assustadora. Minha arte e minha filha: como poderia despedir-me da Terra deixando tantos dependentes sob minha responsabilidade? Pois, já não me anima uma existência em débito comigo mesmo...

A/D: Tu és nobre e esta não deixa de ser uma nobre preocupação. Todavia, o que me diz é uma nobre tolice: cada criatura é responsável por si mesma. Tua arte e tua filha - criaste muito de algo novo: cada qual trilhará seu próprio caminho rumo a luz. Quanto a tua filha, ainda no útero há competição entre os espermatozoides; o óvulo fecundado ainda haverá de vencer o sistema imunológico; o ph; a flora biótica do seu ambiente de nascença; e vencer a própria dependência da mãe e do pai, enfim. Não seja como pai o que fora como criança e jovem - pois ainda quero ver-te homem: um amargo rancor da ausência do teu pai e da irascividade da tua mãe - perdoai as crianças assustadas e mal crescidas estampadas em seus rostos! Isso não me custa nada te lembrar. Quanto a tua arte: para ela, são necessários os ouvidos certos. O acaso pode ter te trazido alguns; todavia, não te envergonhes de forjá-los tu mesmo!

J: Disso eu bem sei... em todo o caso, eu sei que preciso viver por, pelo menos, mais dez anos - para poder prover minha filha de uma sólida formação intelectual e psicológica - saúde, conforto material, e afetos alegres ela já tem -; para poder registrar e publicar as minhas obras. Mas, quando reflito nos meus últimos dez anos, vejo com desânimo tal empreitada: demorei, no mínimo, oito anos para ser honesto com os meus mais profundos sentimentos e, agora que finalmente o fiz, me sinto como que um principezinho atordoado, perdido no deserto... Ao menos no passado eu era um adolescente - esse ser cuja carne é embebida em esperança. Quê resta a mim agora? Aprender a decair com alguma elegância e honestidade; ser feliz? Já não tenho tantas ilusões; tentar? Já não sei se é producente gastar aí as minhas forças.

A/D: O certo é que o deserto deverá ser tão grande quanto mais elevadas as tuas esperanças. Bem sei que aprendeste na filosofia a não caluniá-las. Seu peito já bate mais calmo - vê? Foi bom colocar a conversa em dia; botar as coisas pra fora... Toma o tempo necessário para as coisas: hoje choveu todo o dia; amanhã e depois abrirão as flores e amadurecerão os frutos das árvores - tu mesmo testemunhaste isso com aquelas rosas amarelas. Ouve? É o silêncio do teu coração que agora bate em paz. Quê são dez anos? Quê seria da tua vida se eu te levasse comigo agora mesmo rumo ao teu ocaso? Ao fim e ao cabo, seria a mesma passagem, do pó ao pó - escolha o que neste ínterim possa tornar essa viagem um tanto mais agradável - está ao seu alcance. Tome da música o que pode ajudar-te agora: respeito ao ritmo - nem acelerar o compasso, arruinando o andamento do arranjo; nem diminuí-lo até a inconsistência da harmonia e da melodia. A vida é uma música. Sem ela, que outra coisa aquela seria, senão um erro? Bem o sabes tu! Mas teu medo te impede de me convidar a deitar contigo na cama e sermos uma só carne; uma só voz cantando a mesma música. Livra-te dessa vaidade rancorosa! - assim falo eu ao teu orgulho. Sejas transparente como a água mais cristalina e deixe que o mundo perceba se és ou não profundo - quê importa a ti o que julga o mundo?! Conhece-te a ti mesmo! Torna-te quem tu és!

J: Se algum dia te fui ingrato, sei que és grande o suficiente, tens asas com a envergadura necessária para me acolher em perdão. Tu és um anjo e "jamais ouvi coisa tão divina...". A cama é mais dura do que aquela a que estás acostumada - e um tanto mais apertado o espaço, deveras; aqui adormece como um anjo também a minha filha - contudo, é uma honra recebê-la na minha casa. Bem sei que meus carinhos podem assustar-te: não quero com eles erigir tua prisão. Afasta minha mão com a tua, se necessário for para a paz do teu sono. Tu que trouxeste-me de presente a minha felicidade: que outra coisa teria eu a dizer-te agora senão "eu te amo"? Pois, eu te amo, ó minha eterna companheira!
Agora vamos dormir, eu e a minha coragem. A experiência me recomenda dormir mais de oito horas para recuperar minhas forças. Vejamos o que será a minha sorte a partir de amanhã. O acaso - traga-me o que trouxer - eu o abençoo.

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