Pródromo: Tive uma noite mal dormida. Contra as minhas leis mais recentes, que determinam observação estrita da dieta e a abolição da restrição de sono, fui dormir muito tarde ontem. Mais de duas da manhã. E tive concurso hoje: o que me fez acordar mais cedo do que queria. Sob essas condições de restrição de sono passei o dia com o raciocínio lento e o humor de rápido enervamento, ainda mais do que o comum. E essa sensação que eu já conheço tão bem, essa letargia, essa vontade de não-viver... já não sei mais se por restrição de sono ou por, talvez até..., depressão.
Mas o que me fez vir escrever foi o pensamento que tive - acho que estava naquele estado intermediário entre o sonho e a lucidez - quando me obriguei a levantar da cama. Detalharei-o a seguir.
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Já viram aquela charge que roda as redes sociais sobre o despertador ser a cesárea do sono? Aquilo nos põe a pensar, sem dúvida. Essa era a primeira ideia, a mais antiga.
Antes disso havia escrito, inclusive, uma estrofe de uma canção do "Iñaron" (o novo álbum, falarei dele depois): "Acordar no meio de um sonho/ Pra me arrumar e ir pro trabalho/ Acordar de um sono profundo:/ Que porra de vida é essa, caralho?". Este tema do tempo de vida e tempo de trabalho sempre me intrigou - por aí me guiam diversas leituras... Enfim, isso me deteve, deve ter circulado dentro de mim por um bom tempo até que emergisse novamente hoje cedo.
A outra coisa foi a leitura de uma matéria assaz interessante ontem à noite, sobre a sensação da passagem do tempo na vida. Como já estou mais perto dos 30 que dos 18, a rotina, aquela velha asquerosa, aquele verme que me rói o peito, me faz pensar: poxa, como o tempo voa! Já estamos em agosto e, quem diria?, ainda estou vivo. Na tal matéria, explica-se como é a nossa régua de medir o tempo - como anteparo sempre o nosso tempo absoluto. Por exemplo, pra minha filha, um ano representa metade da sua vida - e metade de uma vida é, convenhamos, muito tempo - e deve ser assim que ela o sente. Pra mim, um ano... voa. Isso também ocorre porque na infância tudo é novidade e, assim, o nosso cérebro desacelera o tempo para apreender as experiências; já na idade adulta, quase tudo é rotina enfastiante, o que nos leva a ver o dia de trabalho - aquele monstro terrível - passar correndo...
No nível inconsciente, eu estava fazendo uma síntese ligando estas duas ideias, reflexões em que me detive conscientemente por alguns instantes ao longo destes últimos meses.
Pois bem: hoje, acordei pensando em como a cirurgia de cesariana com hora marcada, a critério da conveniência econômica da equipe médica e/ou da vaidade envenenada de alguma mãe/família (já que quase sempre a mulher não tem a sua autonomia também neste momento), é de uma violência - que nesse nível da vida se confunde entre simbólica e física - imensurável, pois, priva o bebê de perceber que está na hora de nascer. Simplesmente, porque não está. O feto talvez saia do útero dormindo e desperta com o terror de uns extrauterinos, vestidos de azul (ou branco ou verde, tanto faz: aqueles ciborgues do biopoder), que lhe põe sob uma infinidade de procedimentos invasivos - alguns devem doer tanto... -, que não lhe demonstra nenhum afeto alegre, nenhum colo quente, nenhum carinho, nenhuma voz terna... num mecanicismo, numa ofensa, num apequenamento da vida que deverá envergonhar tudo aquilo que virá à humanidade - o devir. Berrar de desespero nesse momento é, pela falta de repertório de manifestação dos afetos, até pouco pela experiência terrível de assim nascer. Sabe-se lá os efeitos dessa primeira experiência extra-uterina na formação da psiquê humana! Os médicos não o sabem, não o querem saber - estão muito ocupados cumprindo o juramento... dos hipócritas!
Hoje despertei de uma "cesárea", com o despertador do celular, e fui arrastado desse meio-que-um-sonho em que eu era um feto acordando na mão de uma fria e mórbida equipe de saúde...
O nascimento da minha filha sempre me foi muito marcante. Deveras, lembro dela nascendo assim, dormindo, incauta, nas mãos das obstetras. Não pude tê-la imediatamente comigo, dado o protocolo médico padrão, mas pude acalentá-la por todas as horas que se seguiram até que ela pudesse ter o peito, o calor e o amor da Maíra novamente e sei que essa experiência, apesar de intrinsecamente violenta, não será uma marca profunda em sua psiquê - pois, 1) eu invejo a experiência intra-uterina dela, nos divertimos e fomos pra cachoeira e pro parque e ouvimos muita música juntos! 2) e porque nela eu imprimo todos os signos da força, com o sangue da minha própria carne. Se ainda estou vivo, este um dos maiores motivos.
A despeito disso, nascer pode ser uma passagem sutil, porém alegre, para uma vida de experiências engrandecedoras, que impregnam de sentido todos os recantos do nosso espírito. Para isso, não apenas o nascer deverá mudar, mas o modo como encaramos (e encarnamos) a totalidade do nosso viver.
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