quarta-feira, 8 de julho de 2015

A Gaveta dos Enganos

No meu quarto há um armário repleto de gavetas. O meu quarto é uma dobra da minha casa - que é a extensão do meu quarto de quando ainda morava com minha mãe, mais evoluído, mais compartimentado. Naquele armário há uma gaveta que eu chamo de gaveta dos enganos. Certo dia, resolvi botar tudo em ordem e jogar os meus antigos enganos fora. Foi triste, deveras: tive de me desfazer de coisas que um dia me foram queridas, a despeito do desgaste perfeito pelo tempo - eu as queria eternizadas... Descobri depois que essa era uma vontade mortificante, taxônoma: categorizava e classificava aquilo que já não podia simplesmente haver.
Pois bem: inspirado no exemplo de amigos, que bem faziam propaganda da sua doutrina de jogar o velho, o desnecessário fora, ainda ouvi aqui ou ali sobre um provérbio oriental que pregava algo como "o novo só toma seu lugar quando o velho vai embora" - foram as estrelas me dizendo em símbolos. Versado que sou na arte de interpretar símbolos, passo destarte a criá-los.
Ao abrir a gaveta, comecei por desatar os nós daquela superfície empoeirada... Haja fios! Que se dane! Que vão logo todos embora! "Nada a perder a não ser os meus grilhões"? E como pude guardar comigo uma Bastilha inteira?!
Depois era a vez dos corpos de fundo, aquilo que pesava e se escondia e se amarrava aos cabos de aço que me prendiam e impediam de voar a ave livre da minha vontade. Como pude um dia amar tal objeto? É apenas um objeto - fui eu quem lhe dei qualquer valor, não há nada no mundo que valha a priori... Como pude ser condescendente com tantos erros - meus, dos outros... - Todavia, hoje eu sei: era o que eu precisava guardar, pra enternecer e moer e fazer daquilo a minha tinta com a qual eu pudesse inscrever esta nova lei na tábua da minha vontade: a medida de tudo sou eu
Como pude ser tão romântico, me apegar a tantas medicinas, ignorando aquilo que me fazia doente?! Pensava eu que poderia colorir-me tingido com tinta de chumbo? Ela não me impedia de desbotar e ainda causava doença!
Antes minha ferrugem exposta! Antes ser honesto quanto as minhas fraquezas!
Se escrevo com as mãos cheias de pedras é porque há uma lâmina d'água por sobre a qual eu quero me entreter - agora, que descanso e me recupero do mergulho.
Se floreio qualquer coisa que digo é porque assim me divirto - não creio em nada do que falo, sei que o valor de tudo sou eu quem crio: pois, logo, se floreio algo que digo é porque quero lançar lírios a um túmulo; rosas por sobre uma cama; cravos em cabelos... É porque quero lançar o meu perfume e chorar; suspirar ou sorrir. Se lanço minhas flores displicente é porque reina a minha vaidade leonina - louvando a exuberância do meu jardim. Se minhas flores murcham, não as uso para marcar páginas de um livro que eu já li: devolvo-as à natureza - como merece tudo aquilo que perece... Não permito que apodreça viciando meus olhos: que eu nunca diga, desdenhoso, "tudo é podre!". Deixo isso para os fracos de vontade, que não suportam desviar o olhar daquilo que lhes enoja e do qual acabam se afeiçoando, repetindo de tanto ver. Não posso - nem uma única vez mais! 

Haja gaveta! Quão profunda ela era e eu nem me recordara! E estive, é verdade, um tempo tomado pelo horror da visão do seu vazio: quanta poeira, quanta teia de aranha!
E fazia eu minhas caminhadas pelo bosque - distraído, lançando minhas flores e cantos ao vento, contemplando a beleza da vida - atraí com isso uma bela ninfa que primeiro segue o caminho do meu perfume. Na segunda tarde, se permite seduzir pelo meu canto, capturada pela melodia e timbre suave da minha voz. Na terceira, me presenteia com uma mecha do seu cabelo... 
E feito: estou pronto pra encher novamente a minha gaveta dos enganos!

Minha ave voa livre para a luz
Que a leitura de Nietzsche reluz

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