
“Comentário
a Respeito da C.E.I.”: Escrevi
essas estrofes tenebrosas entre março e maio de 24. Neste
comentário, não teço elogios, não que a cidade e sua gente não o
mereça — pelo contrário: algumas das pessoas que mais admiro na
vida inteira vieram do IAPI para cá de caminhão e tenho a
inesgotável honra de ter com essa gente laço de família. Mas o
caso aqui é certamente ocasião para uma elegia.
Originalmente havia pensado no título em inglês, parafraseando uma
canção do Nirvana, mas ficaria muito fechada esta metáfora e
declinei do seu uso. Soou um certo ressentimento, o que certamente
não é minha intenção. Sou malicioso demais para me levar a sério,
mesmo o meu maior sofrimento: que ridículo ele é! Posteriormente,
me veio o título definitivo que deriva da canção de Belchior,
“Comentário a Respeito de John”, que sempre toca no boteco da
esquina da minha casa aqui na C.E.I., onde fiz o meu
lar.
Uso “C.E.I.” para evocar um símile de Ceilândia. Com isso,
porém, não quero reduzir a cidade e sua gente a este retrato. O
macaco de Zaratustra fala melhor sobre a grande cidade. Aqui, apenas
registro os contornos de um conjunto de experiências que tive, da
minha
perspectiva, usando figuras de linguagem bastante licenciosas, que
formam não mais que a imagem de um sonho — ou de um pesadelo
— que vivi por essas paragens. Me remeto, pois, a algumas pessoas
muito específicas, alguns amargos maus encontros. Adiante, pensando
sobre um destes interlocutores doentes, e refletindo sobre o que me
dissera uma vez (que se sentiu solitária durante a pandemia,
tadinha), lembrei-me de uma canção que eu escrevi naquele período
de 2020, “Portador Assintomático de Vida” [“Ruínas do
Futuro”, 2020], criada justamente como crítica dessa espécie de
gente neurótica que sequer “sente” que está viva, que se perdem
no personagem que inventaram para si, viciados em trabalho, em
dinheiro, em produzir algo, à procura de validação, cheios de
maquiagem e falsos sorrisos, essas bocas arreganhadas cheias de
dentes, em eterna fuga de si... Jamais permitirei que se aproximem de
mim novamente com seu impulso vingativo contra a vida, esses
vampiros! A minha saúde, a minha alegria maliciosa, a minha crítica
afiada, a minha ironia refinada, tudo em mim para eles é afronta —
mesmo o meu maior amor é para eles apenas provação — e que assim
seja! Deste modo foi decidido seu título, acompanhado dos subtítulos
alternativos — como desaforo e desforra. Tenho repulsa ao bairrismo
elogioso “da quebrada” que me soa como um falso orgulho por tudo
aquilo que a “quebrada” não tem, um orgulho pela negatividade,
que não parece ter coragem de abrir bem os olhos (ou talvez falte
coragem pra abrir
a boca
onde impera uma confederação de velhacos em cada esquina). Meus
melhores estudantes são as inteligências rebeldes, que não se
sentem coagidos pela mediocridade da maioria — eles
me compreendem, nós nos compreendemos.
Tampouco me regalo no elitismo típico da sociedade brasileira,
brasiliense, em especial, cujas fronteiras de mundo são a EPIA a
oeste e a EPCT a leste e que se acaso conhecem a Ceilândia é apenas
enquanto lugar onde se vai comprar droga ou sexo barato. Eu amei
a Ceilândia — e paguei caro
demais por
isso... Ah, eu faria bem se fizesse como Ulisses, que se despede de
Nausícaa “bendizendo mais do que amando.” Porém, ainda estou
aqui. Há 17 anos, quando vim de Goiânia, eu certamente era um
forasteiro na UnB: eu reconhecia Brasília da infância, mas não
tinha aqui minhas raízes e nem o olhar enviesado de quem nela
cresceu. Jamais pertenci a panelinhas. Sou estrangeiro em toda a
Terra. Já o disse antes: goiano demais para ser brasiliense,
brasiliense demais para ser goiano, goianiense demais para ser
vilaboense, ceilandense demais para circular desavisadamente pelos
centros econômicos de Brasília e, por último mas não por fim,
playboy demais para pertencer
à Ceilândia. E, como não possuo glândula para secretar
hipocrisia, possuo o rigoroso pudor de manter distância de qualquer
puxa-saquismo, seja em nome do pequeno poder, do dinheiro ou de
dourar o lattes. Entretanto, na C.E.I., experimentei um abismo ainda
maior na interpretação mútua dos sinais que se pratica no primeiro
encontro entre dois: aqui, eu sou mais estrangeiro do que jamais fora
— olhava para a gente e a gente me olhava, ambos com um curioso
estranhamento, alguma admiração e um inaudito nojo.
Eu jamais havia conhecido tão abundantes exemplares de diamantes
brutos, aguardando pelo polimento da cultura. Jamais havia conhecido
tantas almas dotadas de virtudes afiadas para as quais elas eram um
corriqueiro, frequente acaso feliz do destino, fruto da sobrevivência
num ambiente hostil, onde os piores “caem pra cima”, como eles
mesmos dizem. Nunca havia conhecido tantos muros altos, portas
trancadas e malas-sem-alça em forma de gente. Suponho também que
eles jamais tenham visto tão petulante, sensível, incorruptível,
destemido e, para além do limite do aceitável, virtuoso exemplar da
espécie humana, que rechaça ainda mais do que contradiz toda a
valoração corrente na cotação da cultura... Bem
vingado
eu estarei de ti, murcho coração dos meus inimigos, que mal sabe
bater no tempo certo e sequer bombeia sangue — e sim veneno. Eu
amei a Ceilândia? Que tolice! Eu aprendi
muitas coisas na Ceilândia! Contudo, ainda não aprendi: a hora
de parar
e a me
calar.
Oxalá que eu nunca aprenda essa lição a que tentam me versar. Mal
sabem eles que estou a caminho de me tornar novamente criança,
restaurando a inocência da minha vontade, desaprendendo e esquecendo
muita coisa, e seu receio e agressividade para comigo é algo que
ainda me fará rir — por um tempo longo demais já me infligiu dor
pungente esta violência indizível que sofri. E
é sobre isto
esta canção.
Ps.:
Veio bem a calhar a imagem que ilustra o cartão do vídeo: uma
pintura feita por ex-alunas minhas (As autoras: Anna Clara, Geovanna,
Letícia, Gisele, Micaelly), de uma escola no centro da Ceilândia,
origem e locus de muitas das coisas venenosas e rebaixadas, de
algumas punhaladas que tive que superar e que estão retratadas nesta
canção. Parabéns e obrigado, meninas!