Posto aqui esta resenha nunca antes publicada do meu álbum de 30 anos de vida/15 anos de música: "A História da Música de Juliano Berko" (2019).
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Uma árvore jovem, mas
que, contudo, já atingiu o ápice da altura da sua espécie. Uma imponente Sumaúma,
cujas virtudes — e mesmo vícios — não se medem com as demais árvores ao seu
redor: sobre elas projeta sua sombra.
Representa para elas o terror daquilo que bloqueia a luz. Um grande
mal-entendido, como sabem aqueles com altura
o suficiente para o conhecimento. Mal sabem esses pequenos arbustos
ingratos que, a bem da verdade, ela as protege da virulenta radiação do sol de
um grande meio-dia. Altiva, esta
Sumaúma toma a ingratidão e a desconfiança das plantas que grassam ao seu redor
como a parte que lhe cabe. E ainda generosa: permite que mesmo aves de rapina, Uiraçu (ou Harpia, para os gregos), façam nela sua morada; pequenas orquídeas
proliferem em seus galhos, nutrindo-se de sua abundância — alegra-se de sua força e coragem, de suas cores e aromas. As suas
raízes são profundas, lançando-se em
direção à Terra com sede de saber, libido
sciendi, sensual e sagaz; entre elas se entrelaçam víboras, Sucuris (ou Hydra, para os antigos) e outros monstros que rastejam na escuridão
da floresta. Dobra-se em altura com o tronco e a copa, ansiando pelo céu do imaculado conhecimento, pura e plena
daquilo que, para tal, é condição fundamental: o amor.
Aqui se percebe como
estas contradições, que se expressam livremente na vida, se constituem
metáforas de seu próprio corpo, a sua própria constituição enquanto ser vivo
prescinde do tacanho moralismo que as renega e disfarça. Isso sabe o que se tornou mestre de si mesmo; isso aprende o que é o seu aprendiz. Aquele é Zaratustra, com sua
águia e serpente, raízes e galhos; este é o Jovem na montanha, com seu cansaço
e inveja, autocomiseração e autopenitência.
A obra que aqui se
apresenta nada mais é do que o fruto do diálogo entre estas personagens ao
longo das últimas três estações ocorridos em meu espírito que, refletindo sobre minha vida e as questões
fundamentais que me são familiares, sobre a metade da minha existência dedicada
à música — venho me tornando compositor de canções desde os 14 anos — e
sentindo a necessidade de contar a minha história e a história da minha música
— que, para todos os efeitos, é a grande tarefa da minha vida, aquilo que me é
único e indissociável. Para tal, tomo como parte estruturante da referida obra
o capítulo “Da Árvore na Montanha”, do Zaratustra de Nietzsche, transformado em
versos e musicado, dividido em quatro partes. Ora toma protagonismo o mestre,
ora o aprendiz. O mestre, já maduro, usa um tom de voz mais baixo, uma oitava
mais baixa ao cantar. O aprendiz, ainda verde, usa um tom de voz mais alto,
põe-se a gritar uma oitava mais alta ao cantar.
Esta obra foi pensada
para representar em cada canção um ou mais estilos e ritmos musicais que
constituíram a minha formação: o proto-punk
rock e power pop de minha origem
e fundação; o reggae, reggaeton, o funk e os demais ritmos de origem africana e latina; o jazz, blues e bossa-nova de
escalas pentatônicas e rítmica mais complexas; o baião, a balada, o eletrônico, o folk e o indie: todos
presentes, mais de um em alguns casos, em cada canção. Vejam meus amigos: eu já
sei quem sou e conquistei o meu
espaço. Com isso não quero dizer que disputo consciências nem que estou à venda;
nem mesmo almejo ser ouvido por quaisquer ouvidos: não sou um músico miserável
o bastante para tal. Sei que o deserto é longo, mas eu mesmo me constituí num
abundante oásis: sou o meu próprio mecenas, sou o meu próprio ouvinte! Torno-me
um animal mais raro a cada estação... Hoje mesmo meus melhores amigos e
ouvintes estão mais distantes de mim: também o encontro com eles se torna
evento menos frequente, pois, alguns dos que me acompanharam até aqui já não me
prometem grande futuro e nos estranhamos... O deserto, portanto, tornou-se
ainda maior. A Amazônia mesmo arde em chamas, fazendo do planalto central um
anteprojeto árido do futuro da humanidade industrial baseada na exportação de
commodities. De modo que se faz mister celebrar com este álbum conceitual os
meus 30 anos de vida, 15 anos de música, de profunda alegria e de criação de
sentidos e valores vivos — a despeito de toda a mendacidade e covardia da nossa
cultura decadente, refém do ressentimento mais venenoso! Para longe com ele! Sobre
tal é necessário até mesmo me impor silêncio, uma vez que algumas questões são
expostas nas canções de maneira bastante loquaz — mais não é preciso dizer.
Nesta hora de música
que apresento canto, danço, rio, choro e louvo a vida para satisfazer os
imperativos da existência: está aqui registrada, então, esta minha história! Estão aqui gravadas
estas minhas verdades! Carpe diem, amigos! Cave musicam, irmãos!
1.
The
Tree On The Hill
É a canção estruturante do álbum,
dividida em quatro partes é o capítulo do “Assim Falou Zaratustra” de Nietzsche
musicado a partir do cotejo entre algumas traduções em inglês. Algumas
passagens são versificações literais compostos a partir do texto, outras são
criações poéticas minhas a partir das imagens contidas no texto, em especial na
parte IV. A divisão da canção em quatro partes produz 13 faixas, como a
trilogia “Infinito Outubro” (2007), “Livro Livre” (2008) e “Coisa Pra Dizer”
(2008); caso considere-se a canção como uma única peça, produz 10 faixas como a
quase totalidade das obras após esse período inicial. Aqui, mostro a
importância do folk dylanesco, da balada, do rock industrial, como o entendo:
Killing Joke; e do rock progressivo na minha formação. Foi a segunda canção
composta para o projeto, em idos de março. Ela abre o álbum com um arpejo
acústico, em outras passagens utilizo o efeito de “slide” na guitarra sobre o
mesmo arpejo, e fecha com uma belíssima balada na qual está presente um jogo de
vozes ‘mais baixa+mais alta’, símbolo do esforço de unidade contra as pressões
dissociativas que todos enfrentamos em nossa psique, a unidade entre Jovem e
Zaratustra, mestre e aprendiz; tronco, copa e raiz.
2.
Mare
Tranquillitatis
Foi uma tentativa de recriar o primeiro
poema que escrevi, “A Lua”, escrito por volta de 2001 ou 2002. Lembro que havia
me alegrado tanto com aqueles versos que cheguei a mostrar para algum amigo,
colega de classe que me fez a cortesia de mostrar para a nossa professora de
língua portuguesa. Eu não tenho esse poema guardado e apenas pude reter uma ou
outra imagem ali evocada em minha memória, como o “farol” que guia os
apaixonados... Certa noite eu esperava um ônibus sob um imenso luar que tomou
meu espírito de nostalgia daquele poema e escrevi os versos todos da música
logo que cheguei em casa. A música foi composta com apenas três acordes (C, F,
Am), para rememorar o esforço juvenil de criação de um punk rock clássico,
contudo, o arranjo é tão diverso que não parece assim tão simples. Por fim,
adaptei o arranjo para o ritmo de um funk tradicional, “Miami beat”, ou coisa que o valha, o mesmo que utilizei em “Vivat
Comaedia!” (“Endemônio”, 2017) que é a canção que fiz favorita da Aurora e
havia prometido que faria outra com base no mesmo ritmo. Foi a primeira canção
criada para o álbum, por volta de fevereiro. Daqui em diante, todas as canções
seguem uma ordem cronológica de criação ao longo de 2019. Por fim, o seu título
é o nome latino de uma região da face visível da lua.
3.
Sunlight
Paranoá
Esta canção surgiu a partir de seu
título que é um trocadilho com uma canção do Lobão, “Moonlight Paranoia”; quis
fazer algo que a rememorasse, mas que fosse sua antítese em ética e estética, a
antítese dessa hegemonia conservadora carcomida, no rock e na política, sob a
qual ora vivemos. Os versos foram desenvolvidos a partir de um texto que
publiquei n’O Verso Lá No Verso, “O
aprendizado do mar”. É um reggaeton, algo que surgiu recentemente em meus
ouvidos e que já havia me utilizado antes em “Alegria” (“Endemônio”, 2017). Me
agrado da sutileza dos arranjos e do suave balanço deste ritmo latino. É uma
ótima forma de mostrar o meu desprezo
pela ética e estética do roqueiro classe-média latino-americano da periferia do
mundo, afetado de superioridade diante dos povos tradicionais da América. Um
autodesprezo, inclusive, e um apreço ao que nossa cultura produziu de original
e diverso. Só é possível amar o diferente. Este afeto se repetirá mais adiante no
álbum.
4.
O
Alquimista
É uma das poucas canções que escrevi de
uma só vez. Deu-se a partir da reflexão sobre a filosofia Nietzscheana da
transvaloração dos valores nutrida das leituras do “Além do Bem e do Mal” e d’O
“Anticristo”. Como faço há alguns anos, esta é a música do álbum cujo ritmo é
divido em três tempos. Evoca belas imagens em seus versos e é uma canção
poderosa em que rendo homenagens ao blues como forte influência indireta sobre
minha obra.
5.
Atrás
Do Trio Elétrico (Só Não Vai Quem Já Morreu)
Esta canção desenvolveu-se a partir do
seu título, que me ocorreu no carnaval deste ano. Originalmente, queria criar
um samba ou marcha carnavalesca, o que não se desenvolveu ao longo do processo
criativo. Descobri uma canção do Caetano Veloso com o mesmo título, o que me
levou a utilizar o estratagema dos parênteses para a diferenciação. É a mais
política canção do álbum, por isso a mais afetada pela profunda degeneração
cultural e moral que se experimenta a partir do ar que se respira hoje no
Brasil. Nela, faço referência ao antológico samba-enredo apresentado pela
Mangueira no carnaval deste ano e rendo homenagem ao pós-punk e ao hardcore,
este como influência indireta, aquele como influência direta na minha
constituição artística. É introduzida por um solo de bateria.
6.
The
Wonderer
É a segunda canção em inglês do álbum
criada, basicamente, a partir de aforismos de Nietzsche em inglês com o refrão
baseado num jogo de palavras que causa uma suave aliteração. A música foi
pensada para recriar um ritmo de funk/funk rock, que me utilizei por vezes,
como outra de minhas influências colaterais. O título é um neologismo criado a
partir de “Wanderer” (“Andarilho”) e “Wonder” (Maravilha). Seria algo como o
“criador de maravilhas”. Há uma versão em português cujo título é “O
Andarilhoso”. Possui uma citação de Heráclito que pesquei no twitter e com a
qual muito me identifiquei: “One person is ten thousand to me if he is the
best” (“Uma pessoa são dez mil para mim se ela é a melhor”). Possui também um
magnífico solo de guitarra+baixo.
7.
A
Viver Se Aprende Vivendo
É uma das minhas favoritas do álbum,
criada a partir de um riff que havia criado ainda em 2018 e que veio a se
tornar a base do refrão. Portanto, foi criada a partir do segundo refrão. As
estrofes e o primeiro refrão vieram depois. A base musical das estrofes foi
criada para lembrar um reggae, ritmo o qual não componho tanto quanto ouço — e
ouço, basicamente, a partir do gênio Bob Marley a quem presto, aqui, minhas
singelas homenagens. Possui estrofes longas com longas linhas melódicas
descendentes. Aqui canta o aprendiz num rito de passagem à sua maestria.
8.
XXX
É um rock jazzeado, originalmente
pensado para ser uma de minhas “bossas”, tal “Das Tripas, Coração” (“Cave
Musicam”, 2018), que aprendi a compor ouvindo os tropicalistas e Tom Jobim, que
muito me agrada. Tentei fazer uma espécie, vá lá, de “walking bass”. O título é
a minha idade corrente em algarismos romanos e alude à maturidade que atingi a
partir das experiências destes últimos pares de anos. Para o arranjo, me
utilizo do estratagema alcunhado de “sinfonia de guitarras” que desenvolvi
primeiramente em “Lívido” (2009) e me utilizo vez ou outra em alguma canção
desde então. É das poucas canções do álbum que passeia por todas as notas, de
dó (em escala mais baixa) a dó (em escala mais alta), utilizando de acordes
pouco convencionais, como diminutos e inversões. Musicalmente, é a mais rica do
álbum.
9.
Cornucópia
Foi criada para ser um baião.
Inicialmente, o riff da estrofe,
origem da canção, foi criado em sol (G), porém, pensando em gravá-la com a
participação de uma viola caipira (o que findou não ocorrendo até então), mudei
para mi (E), para criar ressonância maior com o corpo acústico do instrumento.
A letra é metalinguística e fala do meu instinto criativo, da minha capacidade
de criar canções e da importância de tal virtude para mim. Até o primeiro
refrão a canção é mormente acústica, com violões fazendo a sua base até que ele
cria uma explosão sonora com a participação da guitarra, baixo, bateria e
teclados que a elevam a um patamar de um “baioque” supersônico. Ao fim da
canção há um solo de guitarra invertido, finalizando a canção de modo
psicodélico. É mais uma das homenagens que rendo à rica musicalidade brasileira,
especialmente a nordestina, de que mais gosto. Por longos anos fui incapaz de
ouvir samba-canção e bossa-nova. O baião sempre me foi mais acessível. Cito
como referências: Tom Zé, Alceu Valença e Luiz Gonzaga. Por fim, cornucópia é
um símbolo de abundância e fertilidade, motivo de muitos quadros de natureza
morta dentre os quais um que eu via no apartamento da minha vó quando criança.
10. Torre do Silêncio
Foi criada para ser uma música
inteiramente composta de sons eletrônicos (bateria e teclados), lembrando o
arranjo hegemônico presente na obra “Indizível” (2012). O projeto do audacity
desta canção, inclusive, tem origem no projeto de “Benefício da Dúvida”
(“Indizível”, 2012). No estribilho anterior ao refrão me utilizo de um ritmo
dividido em quatro tempos de sete micro-tempos, já utilizado no fim de
“Liebesliede” (“Endemônio”, 2017). Por fim, acabei colocando guitarras nos
momentos epifânicos da canção, quando subo o tom de ré (D) para mi (E). Assim,
faço referência aos artistas indies e de música eletrônica que foram
influências diretas sobre mim, como MGMT e Chemical Brothers. A letra é baseada
na história do Zaratustra histórico, que teria vivido em algum lugar da Pérsia
antiga. Isso se mostra nos mitos sobre seu nascimento, sobre o abandono de sua
pátria na qual havia um lago, etc. Tomo como símbolo para mim mesmo e meu
“abandono” por longos anos do lago da minha pátria, o Paranoá, para onde
retornei apenas aos 18 anos. É uma canção que representa uma dietética de como
quero viver a vida e mesmo de como quero morrer: Torre do silêncio é o espaço
dedicado ao depósito dos restos mortais dos zoroastrianos, entregues ao sol e
às aves de rapina, até tornarem-se pó que é, em definitivo, deitado no fundo de
mares e lagos. Na epifania, me utilizo de falsete para atingir uma nota mais
alta, signo do esforço de elevação, exercício que constantemente realizo em
vida, como quero ser lembrado na morte.
Estão aqui registradas
estas minhas verdades! Carpe diem, amigos! Cave musicam, irmãos!
[Juliano Berko, Outubro de 2019]
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