Dedicado
àqueles que buscam pureza no coração.
[Dedicado ao meu
colega Luiz Gustavo, pessoa gentil e amável, colega de escola, ele do 2º ano,
eu do 1º, evangélico com quem por volta de 2004 eu, declarado ateu desde
sempre, dialogava francamente horas a fio sobre questões da vida, quando o
Brasil ainda possuía uma atmosfera respirável. Nós mal nos julgávamos, se é que
nos julgávamos — mas não nos condenávamos.]
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Escrever sobre o
cristianismo é sempre escrever com nojo.
É preciso antes respirar um ar mais puro para descontaminar as ideias,
desintoxicar o espírito desse tão pernicioso veneno.
α. Mais de uma vez ouvi ao longo destes
últimos meses lamentos e lamúrios sobre a “culpa”
dos evangélicos na ascensão do Bolsonarismo.
Vindos de católicos, os tais brasileiros “católicos não-praticantes” (mais
tecnicamente preciso seria se eles chamassem a si mesmos de “cristãos
não-praticantes” pois, claro, o único cristão que houve morreu na cruz...), fazendo
o que apenas sabem fazer desde sempre: crucificar
os “culpados” por qualquer coisa...
β. Minha consciência é brutalmente imperiosa
e me compele sempre à batalha: enfrentar estas tão injustas críticas tomo como parte
que me cabe na atual confusão de sentidos. Dela meu espírito não é livre: minha
consciência crítica é o meu espírito
livre.
γ. Ao longo de minha despeitada andarilhagem
pelo mundo, topei com alguns evangélicos (colegas de escola, de faculdade e de
trabalho) cujos contornos psicológicos me atrevo a generalizar da seguinte
forma:
1.
Exercitavam suas virtudes
nos estudos e no trabalho: ainda que não fossem inteligências brilhantes (não
há mais terreno fértil na nossa cultural para que tal coisa possa florescer) e
que carregassem os conceitos e preconceitos típicos do evangélico, demonstravam
seriedade no que faziam, imprimiam honestidade nos seus atos;
2.
Tratavam as pessoas com sincera cordialidade: ainda quando confrontados com os arquétipos daquilo
que condenavam — resumidamente: os de sexualidade diversa e os viciados de toda
espécie — assumiam diante de si mesmos o dever da gentileza no trato como
disciplina rígida daquele que se imbuiu do evangelho, de espalhar a “boa-nova”.
3.
Disciplinavam seus instintos,
exercitavam a mais elevada maestria: a disciplina da vontade. Como muitos são convertidos após ruínas pessoais de toda
espécie, se impunham dieta restrita, sexo restrito, finanças restritas, bebidas
espirituosas restritas. Tantas restrições, tantos represamentos do espírito
desaguavam no ritual catártico do culto,
experiência mística que transborda em gestos e atos que em muito se difere da quietude
da missa católica: enquanto nesta se busca terrivelmente expiar a culpa pelo excesso de liberalidade da vontade e pela mútua
indulgência pelas hipocrisias coletivas (1ª lei do catolicismo: todos os
católicos são hipócritas), naquela se busca efetivamente criar uma vontade mais
pura, regozijar-se na pureza da vontade alheia, ainda que pelo caminho mais
curto, o mais torto, ou seja, guiados pelo sacerdote.
δ. Aqui quero abrir um parêntese:
enquanto o sacerdote católico é quase sempre mais íntegro que seus fiéis, entre
os evangélicos ocorre quase sempre o contrário. O fato de haver irredutíveis
canalhas entre os mais renomados pastores evangélicos do Brasil em nada credita
os católicos, que por décadas eram conhecidos pelos desvios e crimes sexuais de
seus padres, resultados da perversão sexual e psicológica, sujeitos que estão à
patética e arcaica disciplina do celibato para atingir a mais corrupta moral
sexual da face da Terra: a moral dos católicos.
ε. O Bolsonarismo como fenômeno político de massas se ampara num tripé que se retroalimenta, ainda que de forma instável:
1.
Os moralistas
tacanhos, propagandeados pelos sacerdotes de todos os tempos para angariar o engajamento
espiritual dos decadentes de todas as eras e lugares. Compõe este grupo os que
pregam contra a corrupção política, mormente os lava-jateiros, estes últimos flagrantemente orquestrados com os
interesses políticos e econômicos dos E.U.A., vergonhoso de tão evidente. Os
evangélicos, como massa difusa, encontram-se neste grupo, contudo, ele não é
homogêneo. Em todas as pesquisas realizadas sobre o apoio ao bolsonarismo o
recorte de classe é o mais importante. Gravitam este mesmo campo a grande
maioria dos católicos. Pela força da constituição histórica brasileira, a
fração dos trabalhadores, sujeitos a um constante exame público de seu caráter,
que são capturados pelo bolsonarismo, são os que chamo indistintamente de escravos. São os que chamam a si mesmos
de “pai de família”, “trabalhador honesto” e que defendem a castração das
meninas pobres dos morros do Rio de Janeiro (ouvi isso mais de uma vez da mesma
pessoa, professor, negro, católico, de origem na periferia, assim,
publicamente, sem nenhum pudor). Mas, também os escravos não podem ser
unicamente “culpados” pelo bolsonarismo: tudo indica que seus senhores são mais
responsáveis por nutri-lo;
2.
O empresariado
ganancioso, os merceeiros, os atravessadores, os exploradores e investidores de
toda a espécie, cujas ocupações e negócios são apenas manifestações dos seus
profundos vícios de caráter mascarados e chamados de virtude. São os herdeiros
da casa-grande, a classe média
tradicional brasileira, improdutiva, que sobrevive bancada pela fonte de
riqueza de algum patri-ou-mesmo-matriarca. É a gente que se beneficia do
racismo estrutural do Estado e da sociedade brasileira e que requer de volta a
totalidade de seus privilégios que haviam sido ligeiramente arranhados no ciclo
petista;
3.
Os criminosos
de elite, ou seja, todo aquele que não é pobre roubando na esquina: os
grileiros, os madeireiros, os grandes traficantes, os sonegadores, os grupos de
extermínio da polícia e das forças armadas, os milicianos, que são a mais
evoluída forma deste grupo, não à toa pariram o próprio Bolsonaro. Seriam parte
do grupo do empresariado corrupto não fosse a assumida ilegalidade em que atuam.
São as formas modernas dos bandeirantes,
aquele mestiço cujo caráter foi corrompido no contato com a cultura dominante,
cuja existência se garante na exploração de tudo e de todos;
ζ. Como se retroalimentam? Os
criminosos de elite são contratados pelo empresariado ganancioso para realizar seus
serviços mais baixos: é o empreendedor imobiliário que contrata
leões-de-chácara para atacar os seus inquilinos inadimplentes; os fazendeiros
que contratam grileiros profissionais, os bugres, para expandir suas terras
sobre territórios de povos tradicionais; os homens de negócios que possuem
relações com as redes de tráfico de armas e drogas; são os grandes interesses
financeiros desvirtuando toda a comunicação pública com a força do dinheiro. Quidquid lucefuit tenebris agit: como
estes negócios são realizados no escuro, as massas não percebem as longas redes
e teias de conexões que degradam suas condições materiais de vida, tornando-as
vulneráveis à ação dos sacerdotes moralistas. Como os sacerdotes dependem da
desestabilização das massas para sua existência, secretamente apoiam as
intenções dos criminosos e do empresariado, quando não publicamente as
relativizam. Este é o papel, por exemplo, dos “deputados-pastores”.
η. Como se vê, a participação dos
evangélicos na conformação e sustentação do bolsonarismo é ínfima
comparada à tradicional hipocrisia e
corrupção que caracterizam desde sempre a cultura brasileira. Neste sentido,
o bolsonarismo é o mais fiel retrato do Brasil e que esteve escamoteado
enquanto tentávamos nos vender para o mundo como “nação moderna”. Nunca poderia
ser justo que os evangélicos sejam atacados pelos católicos como “pais” do
Bolsonaro: seria antes mais exato o contrário.
θ. Na verdade, é o bolsonarismo que se aproveita dos evangélicos, tomando empréstimo de
sua imagem pública de gente ordeira e virtuosa, que busca por retidão de caráter
criando seu ideal a partir da antítese de seus preconceitos. Não por profunda
identificação, mas, por necessidade de
sobrevivência: o bolsonarismo, como um projeto
de enriquecimento de um punhado de bandidos, assassinos e corruptos e de destruição
total do Estado Brasileiro Pós-1988, cheios de ressentimento pelos direitos que a constituição garantia, precisa disfarçar-se utilizando a roupa do
sacerdote moralista!
ι. O Brasil é o mais bem sucedido projeto colonial do mundo moderno. Talvez
apenas na Rússia imperial um projeto societário tão destruidor conseguiu
realizar-se na escala territorial com que se desenvolveu aqui. Para participar
do Brasil sempre foi necessário despir-se de toda a identidade cultural original, fosse ela indígena, africana ou mesmo
euro-diversa, e introjetar um racismo
que determina o lugar de cada um na escala social.
κ. A brutalidade desta cultura, cuja engenharia social a tudo e a todos
corrompe com altíssima precisão, naturalmente compele para o seu oposto: o
desenvolvimento de uma cultura mais íntegra e fraterna. O evangélico, em geral,
é uma destas formas de cultura que,
para não negar o seu pai/país, agora aprendeu a associar-se com um nacionalismo idealista, mais por
propaganda que genuinamente. O evangélico é uma invenção recente, das últimas
décadas, quando a hegemonia cultural dos católicos arrefeceu, permitindo também
que nós, os ateus, crescêssemos na sociedade. Como tal, o evangélico promete
ampliar-se no futuro. Contudo, não precisa ser na fôrma do bolsonarismo.
Associa-los e ataca-los indistintamente é um equívoco e uma injustiça.
λ. Particularmente, creio que a face mais interessante da cultura brasileira,
a sua malícia, não permitirá que o
vírus evangélico se espalhe muito por muito mais tempo. Podemos conviver
novamente em paz, como filósofos gregos na Ágora: cada um defendendo com argumentos
seus pontos de vista sobre a vida, exercitando a retórica, buscando a pureza da
vontade e da virtude, sem a necessidade da destruição total do outro.
Um comentário:
Excelente análise.
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