domingo, 30 de agosto de 2015

Posfácio - "O Anticristo"

"O Anti-Cristo" é o último livro de Nietzsche lúcido. A loucura de Nietzsche não deveria ser tomada como um depreciador de sua obra (talvez até o contrário...), pois, ali estão algumas das suas mais importantes contribuições ao pensamento, ideias, achados sobre a nossa "civilização":

1. Como o cristianismo - este edifício milenar de práticas sociais inversamente proporcionais aos ensinamentos daquele rebelde, criminoso político que morreu na cruz, o assim chamado Jesus... - é a última consequência do judaísmo, não o seu contrário, como se supunha em tese. Todas as manchetes do jornalismo ocidental sobre a questão da Palestina corroboram com essa visão. E muitíssimos outros aspectos do presente também, como o apego dos evangélicos ao antigo testamento (um livro judeu) e as suas passagens moralistas, só pra tomar um outro exemplo.

2. As semelhanças entre a rebeldia da figura de Jesus (e do cristianismo primitivo, de modo geral) com a dos socialistas do século XIX, de modo geral - o discurso de moral dualista (bem x mal), a pregação da revanche (ainda que apenas nos céus!) e suas inúmeras implicações nas práticas sociais; em uma expressão nietzscheana: a excitação dos escravos; a exaltação de tudo aquilo que é fraco, que não tem força pra sustentar a si mesmo, a própria vontade... (Nem por isso o antisocialismo de nietzsche deveria afastar a sua leitura dos intelectos inquietos, de esquerda... Exatamente o contrário, pois, todas as críticas de Nietzsche aos socialistas são válidas, nobres, e atestadas pela história do século passado)

3. A análise, em símbolos, da conquista dos povos bárbaros; do caminho de destruição das culturas pagãs dos povos tribais da europa trilhado pelo cristianismo na sua peregrinação de Jerusalém à Roma, um ensaio do assassínio, exploração e escravização das culturas não-cristãs de todo o mundo ao longo dos últimos cinco séculos.

O arranjo presente das coisas no mundo - e do mundo nas coisas - é a última consequência do cristianismo, ou da cultura ocidental, ou do capitalismo, como quer que chamemos este verme que nos rói por dentro.

Pagamos um preço muito alto para vivermos nesse presente horrível, meras peças na engrenagem de uma economia financeira, embuste de produção de valor em que quem vale mais é quem mais possui.

Todavia, não há preço alto o suficiente a pagar para sermos honestos, genuínos, singulares, reverberando a dissonância que vibra no mais profundo de nós mesmos.

"Em meus filhos quero superar o ser filho de meus pais e em todo o futuro este presente!" (Nietzsche em "Assim Falou Zaratustra")

"Antes dever do que pagar com uma moeda cunhada com uma imagem que não é a nossa!" (Nietzsche em "A Gaia Ciência")

terça-feira, 25 de agosto de 2015

Pouco Espinoza, Muito Espinho

1. A: Você gosta de Los Hermanos?

B: Hum... não é minha praia, não posso dizer que gosto... [Desde já rindo um riso de autoironia pela inadequação do discurso - quase afetação, contudo, espontâneo] Não me mobiliza afetos alegres! 

A: kkkkk! 

2. Eu que nunca li diretamente Espinoza, apreendi muito de seu sistema filosófico colateralmente - Nietzsche e leituras menores em blogs e afins. E que nunca gostei mesmo de Los Hermanos. A não ser quando figurava Mariana Ximenes no seu videoclipe de "Ana Júlia" - apreciação que, todavia, nada tinha a ver com a sua música, evidentemente.

sábado, 22 de agosto de 2015

Aforismos 114 e 119 - Aurora

"O estado de alma dos homens enfermos , a quem o sofrimento tortura por muito tempo e horrivelmente, e que, apesar disto, não lhe obscurece a razão, não deixa de ter valor para o conhecimento, abstração feita dos benefícios intelectuais que toda profunda solidão, toda libertação repentina e lícita dos deveres e dos hábitos trazem consigo. O gravemente enfermo, encerrado de certo modo em seu sofrimento, lança um olhar glacial fora de si, sobre as coisas: todos estes pequenos encantamentos embusteiros que movem geralmente as coisas, quando o olhar do homem saudável se detém nelas, desaparecem para ele: ele mesmo se vê inclinado ante si mesmo sem brilho e sem cores. No caso em que tenha vivido até então em uma espécie de visão perigosa, esse supremo desencanto pela dor será o meio de se libertar dela, talvez o único meio.
[...]
Mas sentimo-nos confortados ao ver as luzes temperadas da vida e ao sair daquela luz terrivelmente crua, sob a qual sofríamos, víamos as coisas, olhávamos através das coisas.
Não nos encolerizamos se a magia da saúde torna a começar seu jogo; contemplamos este espetáculo como se estivéssemos transformados, benévolos e fatigados ainda. Neste estado não se pode ouvir música sem chorar." 

(Nietzsche, "Aurora", excerto do aforismo 114).

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

A Personalidade do Texto

Ainda ontem, na minha autoentrevista, comentei que a estética de um texto é uma forma de revelar a personalidade daquele que escreve. Hoje, leio que já desenvolveram softwares que interpretam nossa personalidade a partir de nosso texto.

Basta um texto com mais de 100 palavras, em inglês ou espanhol, para uma análise androide. Movido por uma curiosidade incontida, colei a letra da canção "The Convalescent" e o software me analisou da seguinte forma:

"You are a bit critical, skeptical and can be perceived as indirect.
You are prone to worry: you tend to worry about things that might happen. You are susceptible to stress: you are easily overwhelmed in stressful situations. And you are reserved: you are a private person and don't let many people in.
Your choices are driven by a desire for prestige.
You consider helping others to guide a large part of what you do: you think it is important to take care of the people around you. You are relatively unconcerned with taking pleasure in life: you prefer activities with a purpose greater than just personal enjoyment."

A minha apreciação dessa análise ciborgue:

1. Discordo do "bit critical". Sou critical a lot! There's no one more critical than me, indeed.
2. Realmente, por ser sensível de natureza, minha razão se afeta mais que o comum com relação a algumas coisas, mas ela me eleva dessa forma.
3. Outro acerto: driven by a desire for prestige. E não é de qualquer reconhecimento vulgar de que falamos aqui!
4. Em cheio - está inclusive numa citação do "Gaia Ciência" na letra de além de mim: reserved; a private person and don't let many people in. Pois, "quem aqui entra me dá uma honra, quem não entra me dá prazer!"
5. Na medida da satisfação das minhas necessidades, busco auxiliar como posso quem me gravita - seja com minha luz, com meu calor ou com minha distância! 
6. Vejam bem o meu tamanho, amigos. Seria mesmo qualquer prazer vulgar aquilo em que me regalo? 

Entrevista - Iñaron

Concedo uma entrevista a mim mesmo sobre o meu novo trabalho, "Iñaron", que você DEVE conferir aqui.

Juliano Berquó (JBQ): Olá, Juliano. Como vai?

Juliano Berko (JBK): De bicicleta conjugada com o metrô. Não é por moda; por economia; por afetação avant-garde; nem mesmo por uma questão de estética, senão, e sobretudo, por uma questão de saúde. A grande saúde que, como nos ensina Nietzsche, é preciso perdê-la para tê-la. É no metrô, a caminho do trabalho, que me mantive no eixo ao longo destes últimos 9 meses, lendo até aqui metade da obra daquele. Já não sou o mesmo que era há alguns meses atrás, o que dirá há alguns anos! Corro, pedalo, testo minha força em todo exercício quando posso. "Tenho fôlego, mas dói-me o joelho". Mergulho profundo, mas a pressão faz doer meus ouvidos, por isso, nado mais na superfície do lago, fico boiando vendo o céu, de quando em quando o pôr-do-sol... É assim que vou.

JBQ: É verdade que você completou 10 anos de carreira como compositor? 

JBK: A verdade é uma mulher que não me dá mais tesão. Tenho por ela um carinho fraterno, mas quero dela distância segura pela minha saúde e pela sua felicidade. Sou um partidário da mentira. Todavia, em respeito aquela, já são pouco mais de 10 anos compondo canções que pouquíssima gente ouve. Não posso chamar isso de carreira - e ainda bem! Se e quando eu me permitisse abandonar o amador em mim, vendendo minha alma - a minha música -, aí então preferiria estar morto. Seria quase como se fosse mesmo a morte.

JBQ: Então fale um pouco sobre "Iñaron", seu novo álbum...

JBK: É uma compilação de 10 canções que representam meu espírito ao longo dos últimos 9 meses, pesadas como chumbo... E ainda fui capaz de voar com elas, dada a força que alcancei. Creio que se até fevereiro de 2016 eu vier com mais um tanto de músicas assim... não chego aos 27 anos. 
E o chumbo sabe-se ser venenoso. Foi um enorme trabalho tornar todo esse caráter plúmbeo dessas músicas em medicina: uma homeopatia invertida, uma hiperdosagem pela qual tive de tornar mais encorpado, volumoso, denso o meu sangue. Fluindo nas minhas veias, então, era remédio amargo contra um profundo autodesprezo. Se sou capaz de degradar tanto álcool, dele me abstendo posso também fazê-lo com todo o meu remorso - tenho fígado para isso - e, assim, não vou caluniar as minhas mais elevadas esperanças.

JBQ: E esse título vem de onde?

JBK: É a palavra para um determinado afeto - que nós, ocidentais, compreendemos por "raiva", "cólera", "fúria" - na cultura Tupi. Tomei contato com essa expressão no livro "Gentidades", do Darcy Ribeiro, um dos poucos intelectuais brasileiros que me interessam, em um ensaio sobre a tragédia da vida de um índio Kaapor chamado Uirá, que enfrentou até à morte a nossa sociedade para viver a sua experiência transcendente.

JBQ: E o como tem sido a recepção da crítica?

JBK: O universo dos meus ouvintes se circunscreve, praticamente, dentre os meus amigos mais próximos - e apenas os que têm bom gosto... - o que torna uma avaliação da avaliação sobre mim um exercício temerário. O professor Rudá Ricci disse que "tento escrever difícil de modo que apenas um leitor muito refinado possa entender e talvez nem ele" (não foi literalmente assim, mas fundamentalmente). O que ele, obviamente, colocou como uma crítica. Eu posso apenas tomar como elogio, claro. Taí: se eu ajudar a expandir a compreensão hodierna sobre a estética como sendo uma manifestação do caráter e da personalidade daquele que escreve, já cumpri alguma função social com meu trabalho.

JBQ: Poderia fazê-lo de modo mais objetivo? Falar sobre o disco...

JBK: Vou pontuar para ficar mais claro:
1. "Além de Mim": Mais uma das canções que escrevi pensando no interlocutor como minha filha, apesar de valer para a reflexão de qualquer um. É uma mui honesta reflexão sobre a experiência de ser pai - mas não apenas, de outras dimensões da minha vida até aqui também - e vê-la crescer, reaprendendo tanta coisa sobre mim... Foi a penúltima letra a ser finalizada, apesar de ter o arranjo todo na cabeça já há algum tempo. O título é propositalmente o mesmo do álbum anterior, para ligá-lo a este, sendo a sua consequência.

2. "Hatüey": É um ataque ao estado da moral hegemônica. Enquanto não ataquei o cristianismo, e tudo o que é podre que dele escorre, eu não pude ser honesto comigo mesmo - isso foi o que fiz durante um tempo. Logo eu, que me declaro ateu com convicção e boa-consciência desde a infância... Mas isso, claro, não poderia ter passado impune. O único momento em que baixei a guarda para esse veneno do espírito, o cristianismo, foi quando em um relacionamento breve e febril com uma certa garota lá de Goiânia... um sinal do meu próprio desequilíbrio de então. É uma valsa, mas era pra ser também uma referência à musicalidade indígena, que vocaliza dissonâncias que apavorariam um coral casto de qualquer igreja. Que assim seja! Na abertura, evoco uma imagem de uma passagem do Zaratustra; ao final, a história do lendário índio da América Central que se recusou a ir para o ~paraíso~ junto aos espanhóis, preferindo a fogueira... Estes índios orgulhosos! Bem assemelham-se me aos gregos clássicos - apenas a revolta daqueles escravos de má-consciência, apenas aqueles cristãos, que um dia ainda servirão de pesar e lamento por sobre a história da humanidade na Terra, poderiam fazê-los tombar. Que aprendamos a voar mais alto, pois!

3. "A Minha Casa": Foi uma das primeiras a serem escritas, num fluxo turbulento de letra e música, cada qual vinha a cada curva formando esse rio largo que deságua num mar de 2 minutos de barulho antes do silêncio. Tem tantas referências do Zaratustra que eu aguardo algum leitor - lanço o desafio - vir torná-las públicas! É um dos meus melhores arranjos de guitarra, melodia e lírica. Um feito e tanto de canção, do tamanho do meu orgulho.

4. "The Convalescent": Os pensamentos precisam escapar do corpo de alguma forma... Alguns segredos, incontíveis como são todos, merecem ser ditos em códigos - numa outra língua que poucos dominam, deveras! E, generoso que sou, lego à humanidade tal petardo de versos em língua inglesa. Tais foram brotando de rimas zombeteiras, que ajuntava por pura diversão, até que crescera uma árvore tenebrosa que lançou por sobre mim a sua sombra. Nela subi e cheguei aos céus; dela desci com o sentido da Terra. Não tive revisão da letra. Incorri em algum equívoco gramatical, alguma questão de ordem de coesão e coerência? Sejam generosos, amigos... se eu merecer!

5. "Do It Yourselfie": É da época do "Além de Mim" (2014). A última estrofe já estava escrita há muito tempo; tinha toda a música na cabeça, mas não me satisfazia nada do que colocava em palavras... não estava claro nem mesmo para mim o que queria ser dito. Geralmente, o tempo cumpre bem esse papel de desanuviar o céu; tornar claro o escuro; trazer à tona o abissal. É a canção mais política do álbum, a 3ª pessoa na letra não fala sobre mim, especificamente, apesar de rir-me com sua autoironia em alguns momentos, tenta captar o espírito de nossa época e apontar o caminho para transcendê-lo.

6. "Menina do Rio": Um belo exercício de estética no qual redimo Caetano por servir de experiência audiofônica aquele Estado que é um dos mais monstruosos, Israel. Quase joguei essa canção fora de última hora. Não o fiz por pura vaidade - adorei as imagens que nela lancei e a rima do refrão não se repetiria nunca em outro contexto. Sobre ele, um silêncio obsequioso. Fundo de lago é enlameado, todos sabem. Foi ali que me lancei, no lamaçal dos enganos. Em todo caso, uma ótima canção, em forma e conteúdo, pra mostrar a minha força

7. "Eu Só Sei Ser Quem Eu Sou": É a mais curta do álbum, não tem introdução - quer ser direta, objetiva, honesta consigo mesma. Ali estou me redimindo - aliás, no álbum todo. Os meus enganos, minhas recusas, minhas fraquezas... É onde coloco o verbo no imperativo, reencontro a mim mesmo na potência da minha vontade: cala-te, vaidade jocosa; ironia vulgar! Alguns poderiam se opor dizendo "eu sei ser quem eu quiser". Noves fora a desonestidade dessa falácia, o que dizem os outros, vejam bem, não me interessa.

8. "A Ponte": Uma ode a Zaratustra. Evoca novamente a mitologia grega e todo o seu universo de sentidos - absolutamente diverso da miserável moral hodierna. Nós somos mesmo um fim: o tempo, aquele rei, dá testemunho do nosso decaimento, mas não vou caluniar o sentido da Terra! Falando da música, o seu ritmo mesmo evidencia o trotar de quem avança por sobre um caminho sem volta. "Apenas navegar..."

9. "Aurora": O "batizado" lírico de minha filha. Aqui falo dela da forma mais direta. Estávamos no litoral sul da Paraíba quando os primeiros versos, já dentro dessa métrica, foram soprados pelo mar para dentro da minha cabeça enquanto via Aurora absolutamente inocente, brincando na areia... De repente, realizei a importância de um ato simbólico que, em signos, a protegesse, resguardado de toda moral mesquinha; de toda má-consciência; de todos os afetos tristes; de todo o cristianismo, enfim.

10. "Elegia": Foi a última a ser escrita, apesar de, como ocorrera com outras, ter já seu arranjo determinado. Faço uma digressão por sobre a minha própria história: voltei ao tempo em que morava na asa sul; voei de volta à asa norte; sem deixar de passar pela minha primeira experiência no Guará. São versos muito figurados, convidam a todos à reflexão, todavia, não deixo de fazer a minha própria: sobre os contextos de minha vida que me trouxeram até aqui, sobre os caminhos, curvas, desenganos... Arrisco até um verso autoral em alemão - até onde sei, não incorri em nenhum erro estrutural - com a humildade de quem quer aprender, com o orgulho de quem tem coragem de tentar. O refrão é de um aforismo que rascunhei na época em que estava a ler o "Humano, Demasiado Humano" - sugere um caminho para a autosuperação. Um áureo tempo, um sopro de um vento que vem do futuro.

E quem diria?
Aprendi a rir, amigos! Aprendi a rir!

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

O Feminismo ~Pára Que Tá Feio~

Hoje vamos falar um pouco sobre o feminismo, essa nobre corrente de Andrômeda que pende do humanismo, filha prodígia daquele que é avô e pai do sentido histórico. Vou me furtar de comentar minucias de autoras, teorias, multiplicidade de correntes... essa mesquinharia não me cabe, é perda de tempo e, afinal, não é a forma propriamente acadêmica que me interessa aqui. 

Contudo, vamos falar não de Andrômeda, propriamente dita, mas de Medusa: aquilo que eu chamei, zombeteiro como não poderia deixar de ser, de feminismo ~pára-que-tá-feio~ ou, como algumas se intitulam, feminismo radical. Já comentei sobre essa canalhice intelectual aqui anteriormente e vou tentar desenvolver um pouco mais do meu diagnóstico e raciocínio.

Essa vertente, que busca o monopólio do debate sobre o feminismo e aparece vez ou outra em acalorados ~debates~ nas redes sociais, defende, dentre outras coisas (bandeiras históricas gerais do feminismo) e de modo geral, que 1) os homens não podem declararem-se a si como "feministas", todavia, devem apoiar as pautas feministas "desconstruindo" o machismo entre os seus pares de gênero; 2) que os homens não sofrem sob o regime do patriarcado; 3) que as mulheres não podem ser machistas, mas, em determinados contextos, pode ocorrer de agirem alienadas pela ideologia patriarcal e, por consequência, 4) as mulheres, todo o gênero, são sempre vítimas daquele regime. Vamos nos deter nestes pontos. 

1. Como está colocado por algumas visões divergentes, o feminismo não é, a priori, uma demanda específica de gênero - por pressupor uma igualdade formal, econômica, política e social entre os gêneros, ela interessa à humanidade, ou seja, é uma demanda da "espécie". O feminismo radical quer o monopólio do debate, como dito, e quando se é afrontado com argumentos - que não têm gênero, até onde eu sei - dizem que "ozumi" estão querendo "protagonismo" na luta. Noves fora a estética de extremo mau gosto dessa falácia, podemos responder à ela transpondo a sua lógica, dizendo então que só poderia ser comunista, ou de esquerda, quem é oriundo necessariamente da classe operária! O que, no rigor da história, não é verdade. Gramsci se reviraria no túmulo...
Além disso, argumentam que o papel dos homens na construção do feminismo seria... desconstruir o machismo dos seus amigos, homens do círculo social, etc. Este é um argumento muito interessante porque parte do preconceito de que, para os homens, os argumentos de outro homem têm mais força do que os de uma mulher. A visão, vejam só!, que possui a ideologia do patriarcado. É isso o que a voz gutural do patriarcado diz às mulheres que se rebelam para que elas calem à boca. Todavia, é uma falácia e não corresponde à realidade do raciocínio daquilo/daquele que quer conservar o seu poder - o machista ouviria de qualquer um, homem ou mulher, um argumento que falasse à conservação do seu status. 
Moças, se eu conseguir ser claro: um cara que se arvorasse defensor do feminismo numa roda de machistas inveterados seria, no mínimo, ridicularizado até o limite da sua paciência... Porque, reiterando, não interessa quem emite a mensagem, mas como e o que é essa mensagem. Se são homens machistas, que se regalam nos privilégios do patriarcado, não irá fazer diferença quem defenda uma visão diferente do mundo, uma reestruturação das relações! 
E o incauto que se dispor a cumprir o papel de "evangelista" do feminismo... bem, que aprenda ao menos a lançar ossos àqueles que só sabem latir. 

Uma alegoria para finalizar a digressão: 

- Evangelista da Abolição: "Olha Senhor, a escravidão é uma condição que degrada a humanidade e deve ser abolida". [Nota: um argumento racional amparado em um paradigma determinado] 
- Senhor de Escravos: "Ah, claro, que bonitinho... mas e quem vai trabalhar cortando cana... você, seu intelectual metido, que foi estudar na França?! É claro que não!" [Nota: Quem está no poder que perpetuar o seu poder...]

Poderia estabelecer o desenvolvimento desta dialética que demonstra como a "boa vontade" do evangelista funda a "escravidão" assalariada, pra satisfazer a sua vaidade de ver o fim da escravidão formal "desconstruindo" o senhor de escravos... e perpetuando o estado das coisas. Mas tenho outros pontos a comentar ainda.

2. Moças, acreditem: nós, os homens, não somos uma massa homogênea. Não possuímos nenhuma condição que nos classifique a todos de modo geral que não o Y (e olhe lá!) que carregamos no código genético. Portanto, nem todos os homens (e falo aqui apenas dos heterossexuais!) conseguem se adequar ao estereótipo do ~machão~ e às relações preconizadas pelo patriarcado. Os mais machistas, inclusive, não poderiam nunca desenvolver uma sutileza na sua sexualidade para com uma mulher... eles se regalam entre si contando sobre suas experiências sexuais - filmam as transas com as meninas e depois jogam no whatsapp pros amigos verem; não experienciam uma verdadeira e profunda troca de afetos que apenas um homem mais sensível invariavelmente é capaz de estabelecer. Um homem de sensibilidade que seria ridicularizado numa roda de conversa de machistas. Seria contraproducente relatar os inúmeros episódios de embate contra a ideologia patriarcal estabelecidos no decorrer da minha própria vida - não defendendo mulherzinhas, como queriam alguns, mas - sobretudo para poder expressar a mais genuína manifestação de mim mesmo, e isso, pessoal, é simplesmente ser honesto. Enfim, contra o argumento do suposto "feminismo radical" (se é que não confundem raiz com as pontas dos galhos!), se isso não bastar, um silêncio obsequioso. 

3. Aqui chegamos a um ponto interessante. Ninguém "é" um rótulo. Alegar isso é a mais destilada forma da estupidez. Todavia, algumas mulheres podem sim estabelecer práticas e relações machistas - entre si e na lide com os homens (vou me alongar nesse argumento no próximo ponto). Da mesma forma que o feminismo radical defende as mulheres que incorrem em "deslizes" machistas, poderia defender que os homens o fazem da mesma forma: alienados pela ideologia patriarcal. Entretanto, isso é indefensável. Eu mesmo ouvi - li, pra ser mais exato; era uma conversa pela internet - de uma moça com quem tive uma breve e febril relação afetiva, e que hoje se intitula "feminista radical", que em uma foto minha no orkut eu estava com uma "boca de chupar r***" (obs.: já comentei como essa gente é temerosa em estética?). Desnecessário me alongar nessa baixaria: o machismo é o estado natural das coisas sob o patriarcado, tanto faz o gênero em que se o observe. 

4. Este, para mim, é o mais importante. Porque vitimismo é covardia intelectual. É postura dos pusilânimes diante da vida. E, de minha parte, não tomo as mulheres, de modo geral, por covardes ou vítimas incautas de um conto de fadas. Este argumento ignora solenemente que houve um tácito acordo, um "contrato social", não entre os gêneros, mas entre personalidades afins - tanto no masculino como no feminino - na fundação do patriarcado primitivo. 

O primeiro homem de índole machista a descobrir a sua função na reprodução sexual deve ter ficado maravilhado! O seu ódio e a sua preguiça falaram assim: "Posso produzir um exército que exterminará os meus inimigos e um outro que serão meus escravos e trabalharão para mim!", ele se rejubilava! A sua vaidade quis que tivesse então o controle total sobre a reprodução da espécie humana, de modo que ele pudesse satisfazer a sua curiosidade - "como ficaria a minha mistura com aquela mulher? E com aquela outra de pele escura? E com aquela de olhos azuis?"; a sua inveja - "Com essa posso ter filhos e filhas mais atraentes. Este poderá ser precursor do meu poder; com aquela eu poderia me divertir sexualmente ou vender a um bom preço para alguém!" e o seu orgulho - "Esta mulher pode dar-me filhos mais fortes, ampliando o meu poder!".

Este monstro estabeleceu um acordo entre seus pares evidenciando que, para conservar o instituto da propriedade privada, seria preciso ter total controle sobre o trabalho e, para tal, controle sobre a reprodução da espécie. Assim, convenceu os seus colegas, mais ambiciosos que interessados no "amor" de uma mulher. 

Isso tudo não poderia se sustentar sem o apoio da outra parte. As mulheres de índole semelhante, como num conto de fadas, participaram dos mesmos pérfidos sonhos e assim se estabeleceu a fundação da divisão de poder, do contrato entre as partes: a divisão sexual do trabalho.

Como numa primitiva estratégia de marketing, às mulheres eram oferecidas a segurança contra ataques de outros homens lascivos (e tais quais os bancos que vendem seguros têm interesse que haja roubos e acidentes, os machistas de então sobrelevaram a violência física e sexual contra as mulheres, de modo que o casamento pudesse ser um bom negócio) e a estabilidade econômica (no acordo, o homem cumpre com o suprimento das necessidades materiais - o trabalho - enquanto a mulher cuida da organização do trabalho no lar, livre das intempéries, de ataques de animais, de outras tribos, etc.) como os grandes atrativos do casamento - sob o regime do patriarca, estas mulheres estariam a "salvo". 

Para que a reprodução pudesse ser controlada, o controle da sexualidade era uma cláusula pétrea: Até meados dos século passado ainda havia no ordenamento jurídico brasileiro o "crime contra a honra", em que um homem poderia matar a mulher e o seu amante absolutamente impunemente, alegando defesa da honra.

A sacerdotisa da babilônia (um arquétipo, não um indivíduo) pré-cristã, que estabelecia práticas sexuais em rituais religiosos, evocando a fertilidade da colheita, etc. & etc., com a decadência daquele antigo paradigma religioso e o posterior advento da moral judaico-cristã, segue à "castração" dentro do casamento monogâmico. Caso falhasse na gestão dos seus desejos, a morte por apedrejamento seria coisa certa. Àquelas mulheres sensuais e atraentes, que se aperceberam da oportunidade econômica, abriu-se um novo nicho: a prostituição. E, lembrando a Beauvoir, entre o casamento e a prostituição não havia - e nem há ainda - um abismo tão grande quanto se imagina...

Daí decorre toda uma sucessão de gerações, com suas evoluções tecno-políticas, inflexões, ajustes, etc. & etc. que nos trouxeram até aqui.

Novamente falo por experiência própria. Eu sei que espécie de mulher é esta que se adequou ao patriarcado. E elas são tão asquerosas quanto os homens daquelas rodas machistas. Cresci dentre elas. Correm do emprego como o diabo da cruz. Vivem para casar com alguém rico. Forçaram o quanto puderam à minha conformação ao patriarcado. Falharam miseravelmente.

Elas assinaram esse acordo - para o bem e para o mal - e aqui estamos, tentando desfazer os nós de uma corda que nos ata à civilização primitiva, à violência, à castração das vontades, à uma economia dos afetos tristes.

Quão pérfido é negar o debate destas questões! Nada há por sobre a Terra que se assemelhe mais ao machismo que essa degeneração do feminismo!

Eu, que me filio à linhagem dos grandes gregos, sou Perseu: não me vergo. Vejam-se neste espelho, Medusas! Sei bem passar ao largo de vossa monstruosidade! Que virem pedra e pereçam! É Andrômeda a mulher com quem quero ter filhos, pois, eu a amo.

domingo, 2 de agosto de 2015

Sobre A Violência da Cirurgia Cesariana Marcada

Pródromo: Tive uma noite mal dormida. Contra as minhas leis mais recentes, que determinam observação estrita da dieta e a abolição da restrição de sono, fui dormir muito tarde ontem. Mais de duas da manhã. E tive concurso hoje: o que me fez acordar mais cedo do que queria. Sob essas condições de restrição de sono passei o dia com o raciocínio lento e o humor de rápido enervamento, ainda mais do que o comum. E essa sensação que eu já conheço tão bem, essa letargia, essa vontade de não-viver... já não sei mais se por restrição de sono ou por, talvez até..., depressão
Mas o que me fez vir escrever foi o pensamento que tive - acho que estava naquele estado intermediário entre o sonho e a lucidez - quando me obriguei a levantar da cama. Detalharei-o a seguir. 
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Já viram aquela charge que roda as redes sociais sobre o despertador ser a cesárea do sono? Aquilo nos põe a pensar, sem dúvida. Essa era a primeira ideia, a mais antiga. Antes disso havia escrito, inclusive, uma estrofe de uma canção do "Iñaron" (o novo álbum, falarei dele depois): "Acordar no meio de um sonho/ Pra me arrumar e ir pro trabalho/ Acordar de um sono profundo:/ Que porra de vida é essa, caralho?". Este tema do tempo de vida e tempo de trabalho sempre me intrigou - por aí me guiam diversas leituras... Enfim, isso me deteve, deve ter circulado dentro de mim por um bom tempo até que emergisse novamente hoje cedo. 

A outra coisa foi a leitura de uma matéria assaz interessante ontem à noite, sobre a sensação da passagem do tempo na vida. Como já estou mais perto dos 30 que dos 18, a rotina, aquela velha asquerosa, aquele verme que me rói o peito, me faz pensar: poxa, como o tempo voa! Já estamos em agosto e, quem diria?, ainda estou vivo. Na tal matéria, explica-se como é a nossa régua de medir o tempo - como anteparo sempre o nosso tempo absoluto. Por exemplo, pra minha filha, um ano representa metade da sua vida - e metade de uma vida é, convenhamos, muito tempo - e deve ser assim que ela o sente. Pra mim, um ano... voa. Isso também ocorre porque na infância tudo é novidade e, assim, o nosso cérebro desacelera o tempo para apreender as experiências; já na idade adulta, quase tudo é rotina enfastiante, o que nos leva a ver o dia de trabalho - aquele monstro terrível - passar correndo...

No nível inconsciente, eu estava fazendo uma síntese ligando estas duas ideias, reflexões em que me detive conscientemente por alguns instantes ao longo destes últimos meses.

Pois bem: hoje, acordei pensando em como a cirurgia de cesariana com hora marcada, a critério da conveniência econômica da equipe médica e/ou da vaidade envenenada de alguma mãe/família (já que quase sempre a mulher não tem a sua autonomia também neste momento), é de uma violência - que nesse nível da vida se confunde entre simbólica e física - imensurável, pois, priva o bebê de perceber que está na hora de nascer. Simplesmente, porque não está. O feto talvez saia do útero dormindo e desperta com o terror de uns extrauterinos, vestidos de azul (ou branco ou verde, tanto faz: aqueles ciborgues do biopoder), que lhe põe sob uma infinidade de procedimentos invasivos - alguns devem doer tanto... -, que não lhe demonstra nenhum afeto alegre, nenhum colo quente, nenhum carinho, nenhuma voz terna... num mecanicismo, numa ofensa, num apequenamento da vida que deverá envergonhar tudo aquilo que virá à humanidade - o devir. Berrar de desespero nesse momento é, pela falta de repertório de manifestação dos afetos, até pouco pela experiência terrível de assim nascer. Sabe-se lá os efeitos dessa primeira experiência extra-uterina na formação da psiquê humana! Os médicos não o sabem, não o querem saber - estão muito ocupados cumprindo o juramento... dos hipócritas

Hoje despertei de uma "cesárea", com o despertador do celular, e fui arrastado desse meio-que-um-sonho em que eu era um feto acordando na mão de uma fria e mórbida equipe de saúde... 

O nascimento da minha filha sempre me foi muito marcante. Deveras, lembro dela nascendo assim, dormindo, incauta, nas mãos das obstetras. Não pude tê-la imediatamente comigo, dado o protocolo médico padrão, mas pude acalentá-la por todas as horas que se seguiram até que ela pudesse ter o peito, o calor e o amor da Maíra novamente e sei que essa experiência, apesar de intrinsecamente violenta, não será uma marca profunda em sua psiquê - pois, 1) eu invejo a experiência intra-uterina dela, nos divertimos e fomos pra cachoeira e pro parque e ouvimos muita música juntos! 2) e porque nela eu imprimo todos os signos da força, com o sangue da minha própria carne. Se ainda estou vivo, este um dos maiores motivos. 

A despeito disso, nascer pode ser uma passagem sutil, porém alegre, para uma vida de experiências engrandecedoras, que impregnam de sentido todos os recantos do nosso espírito. Para isso, não apenas o nascer deverá mudar, mas o modo como encaramos (e encarnamos) a totalidade do nosso viver