domingo, 19 de abril de 2015

Anedotário

Tenho uma harmonia guardada há tempos na cabeça.
Tentei encaixar umas coisas que havia escrito, mas não consegui desenvolver.

Em mim, a música é um instrumento psicológico - às vezes com mais, outras vezes com menos consciência -, como um vaso que transborda com uma última gota, desfazendo uma tensão que, em momento oportuno, tornará a crescer: aquilo que dele verte é a minha música.

Algumas ideias germinam, crescem, acumulando força até florescer; algumas situações, experiências marcantes, profundas, que se vestem de poesia - aquela força apolínea - e celebram jubilosa união com a melodia: desta aliança é gerada a canção.

Estive há pouco brincando com o baixo e a guitarra. Dedilhei a tal harmonia e, de repente, via uma luz, uma claridade que cegava - a força criadora de imagens me tomou de assalto e escrevi em não mais que 5 minutos toda a letra. Esse fluxo torrencial é evento raro - nós, humanos, como reflexo da força artística que irrompe da própria natureza, emulamos os ciclos vitais - lembro de escrever "Pra Ser Verdade" 9 anos atrás sob este mesmo signo.

Há vida! Ainda bem que existe a música!

terça-feira, 14 de abril de 2015

Resenha - "O Nascimento da Tragédia"

Terminei hoje "O Nascimento da Tragédia", o primeiro livro de Nietzsche.

Senti um Nietzsche comedido, quase envergonhado com relação às suas próprias pulsões, prestando reverências à uma romântica germanidade - Schopenhauer, Kant e Lutero... Um Nietzsche metido à besta e frouxo... Depois, na maturidade, ele apenas deixa de ser frouxo. Mas vira um puto metido à besta! Qualquer um que leia um Zaratustra não volta dele o mesmo humano de antes... ali tem um elixir, algo assim, uma química dos afetos que o bigodudo experiencia e dela se torna mestre.

Este em nada se assemelhou ao Nietzsche de "Ecce Homo", "O Anti-Cristo", "Assim Falou Zaratustra", ao prólogo de "Humano, Demasiado Humano" que li logo em seguida (e que pareceu mesmo outra pessoa, em absoluto) senão na reverência aos gregos como exemplo de uma cultura que talhou a si mesma bela pela experiência com o horror; de júbilo experimentado com a mais elevada e dolorosa tarefa de existir e "ser quem tu és", seja o preço que custar; a tragédia - o "amor-fati", o 'amor ao destino' que permeia a obra filosófica do bigodudo - como remédio contra o pessimismo, esse câncer da existência.

Apesar de sentir falta daqueles belíssimos ataques ao cristianismo - como o próprio lamenta no prólogo, escrito na maturidade -, esse engano de dois milênios, não se lhes faltam à "gentalha" burguesa e sua arte vazia e à modernidade, de modo geral - esse tempo falseador da vida...
Ainda assim, é uma obra que tem suas passagens maravilhosas, que fizeram de Nietzsche, apesar de atacado e ignorado até à loucura em vida, uma das poucas referências de dignidade das ideias que ainda será levada em conta daqui há uma dúzia de milênios. "Porque sou um destino" - ele bem sabia disso, bigodudo metido à besta!

De minha parte, recomendo sua leitura a qualquer - espírito livre -, principalmente, àqueles perturbados pelas forças dionisíacas e apolíneas da música e do teatro. É um livro que Nietzsche escreveu para mim, sinto, como canceriano besta que sou. Se você escreve música, teatro, poesia, qualquer coisa... pode ler: se não te matar, te fará fortalecido.

"O prazer que o mito trágico gera tem uma pátria idêntica à sensação prazerosa da dissonância na música. O dionisíaco, com o seu prazer primordial percebido inclusive na dor, é a matriz comum da música e do mito trágico.
[...]
Se pudéssemos imaginar uma encarnação da dissonância - e que outra coisa é o homem? - tal dissonância precisaria, a fim de poder viver, de uma ilusão magnífica que cobrisse com um véu de beleza a sua própria essência. Eis o verdadeiro desígnio de Apolo: sob o seu nome reunimos todas aquelas inumeráveis ilusões da bela aparência que, a cada instante, tornam de algum modo a existência digna de ser vivida e impelem a viver o momento seguinte."

(Nietzsche, "O Nascimento da Tragédia", aforismos 24-25.)

terça-feira, 7 de abril de 2015

Punk Revisto - Parte I

Fazendo o que deveria ter feito há 10 anos atrás: ouvindo todo o punk britânico-irlandês clássico.
Nunca é tarde para fazer o que ainda se pode ser feito. Nunca é tarde para aprender a viver no tempo certo. No tempo de então, meu contato com a internet se fazia em tatear com as pontas dos dedos todo um universo de possibilidades... Com o passar do tempo, fui conhecer outras coisas, ouvir outras músicas, aprender novas técnicas e deixei latente, decantado aquele desejo por aquela estética poderosa. 

O que sempre me fascinou no punk, especialmente no britânico - os americanos a mim nunca tiveram tanta graça -, é que eles pensavam a estética e a política - que são faces da força criadora em movimento. O Punk foi, sem dúvida, o último grande gemido da voz rouca da contra-cultura (Killing Joke, "Are You Receiving"; Sex Pistols, "Problems"; The Clash, "Tommy Gun", por exemplo). 

O ~movimento~ de Seattle, E.U.A., nos anos 90 é o exato oposto do punk: um refluxo niilista despolitizado engolfado pela indústria do entretenimento. Nem vou me ater a desqualificá-lo por agora, mereço empenhar melhor meu tempo.

De volta ao punk europeu*, em relação à política, eram jovens de uma geração contra a parede na Inglaterra do neoliberalismo, uma manifestação do traumático desmonte da social-democracia nas sociedades pós-industriais. 

Em estética, o absoluto descompromisso para com a canção enquanto mercadoria. Em franca oposição, por exemplo, àquela coisa que não merece ser considerada para a história da arte e que, deveras, merece um tempo ainda maior que o dedicado à desqualificação do Grunge - pois que não lhe toca a sola dos pés - a que se convencionou chamar de "hard rock", e que foi o grande $ucesso da indústria fonográfica dos fins dos 70/início dos 80: de Aerosmith a Bon Jovi; de Van Halen a Guns & Roses. 

O Punk foi o primeiro movimento de assimilação do reggae - Clash, Killing Joke e Stiff Little Fingers gravaram reggaes nos seus primeiros discos - e da cultura da periferia, de modo geral, das cidades britânicas: dos exilados, dos imigrantes, dos marginais. Ao contrário do Eric Clapton, que ganhou muito dinheiro com a versão de "I Shot The Sheriff", do Bob Marley; que afirmou bêbado em show que a Inglaterra "devia voltar a ser dos ingleses", os punks organizaram o Rock Against Racism ("Rock Contra o Racismo") - um evento justamente para contraporem-se à expansão política da National Front - os ~cidadãos de bem~ da direita nacionalista inglesa. 

O punk foi, em larga medida, um canto romântico, lembrando a tradição operária do rock bretão - dos Beatles e do Who - lamentando a sua degenerescência. Tragédia é que o punk, ele próprio, degenerou-se talvez com ainda maior velocidade: U2, por exemplo. 
 
Mas a história, essa mãe generosa, já nos permite contemplar trajetórias genuínas daquela geração de jovens influenciados by the so called beat generation: Killing Joke, John Lydon (Sex Pistols e Public Image Ltd.), Morrisey, e daquelas bandas que ficaram pelo caminho, como Clash, Damned, etc.

quinta-feira, 2 de abril de 2015

Da Psicologia - "A Minha Casa"

Eu costumava "pensar", até meus 22 anos, que a depressão e quaisquer outras questões da psicologia/psiquiatria eram blefes, exageros e todos os outros pré-conceitos das pessoas desse nível. Jactava-me de resolver minhas inquietações, esquadrinhar com excelência os tabuleiros de minha psiquê. Naïf!
Até que vivi, em determinado momento, uma tensão tão larga e profunda em minha vida que afetou a minha saúde física - o meu sistema imunológico -, instando-me a reconhecer o valor de tais questões: a minha saída da UnB, o meu nascimento dado à luz pela minha alma mater. E fora apenas um prelúdio! [Marca temporal: "Orgânico", Concreto Armado]

Pois, no ano seguinte abriu-se um abismo - o maior que havia visto até então - sob os meus pés; quase podia sentir a brisa gutural que vinha de baixo, assoprando tenebrosos assobios em meus ouvidos. Era uma madrugada terrível - da qual viria a Aurora. Mas, até que ela viesse, eu tive que enfrentar tantos monstro mitológicos quanto fossem possíveis. Por vezes, me via em um labirinto de vícios e fugas que me afastavam da luta inescapável - eu relutava em testar minha força e pegar em minhas armas. Tombei e, no desespero, procurei ajuda: encontrei a psicóloga linda. Até então, já havia tateado em todo canto do meu quarto escuro e nada: tudo me arrastava pra baixo. O "espírito do peso" de Zaratustra, a "Pluma de Chumbo"; e, nos últimos tempos, o "Sumidouro" (mas que bom que sou um bom nadador!).

A psicologia é um arremedo de ciência humana e biológica. Segundo alguns mais críticos, uma arte falseadora da filosofia - caso de Freud para com Nietzsche, por exemplo. TODAVIA, vejamos as condições do mundo em que vivemos e entenderemos como as pessoas gastam 125 R$ por hora de conversa com alguém que se abra a ouvir nossas angústias: Onde estão nossos amigos? No facebook, ocupados em publicizar seus hábitos de consumo, um hedonismo medíocre; nas mesas de restaurantes universitários e bares - amizades por conveniência, por egolatria - pessoas que tomam a seus "amigos" como bibelôs das opacas vitrines de suas virtudes sociais - gente pequena que a tudo apequena, anões plúmbeos! Desses amigos, sempre mantive sanitária distância. 

De espécie diversa - aqueles que sempre me agradaram a companhia quando, mesmo depois de anos de distância, vivenciamos a experiência do comum com a mesma intensidade - os que se abrem como piscina ou cachoeira ou mar para um mergulho ou que são, eles próprios, mergulhadores de fôlego e destemidos desbravadores de profundezas - acabei de descrever-me a mim mesmo -, estas são, sim, amizades que valem a pena e que podem, dadas as circunstâncias da fortuna de um, contribuírem para o edifício de uma fortificação em alguém. Estes amigos, desnecessário dizer, são raros, pois, é rara a sua grandeza. Outrora, são eles próprios contraproducentes - como uma água turva em que se deve desconfiar do mergulho. Aí, exige-se de um o filtro para tal turbidez - um filtro da moral: se se der ouvidos à moral, que em nosso peito ela não se abrigue; que não se deixe molhar os pés na lama.

Ora! E pagaremos para recebermos um julgamento moral?! Pois, é isso a psicologia! Pagar pela satisfação da lascívia é mais digno!

Entretanto, não me é dado o prego de crucificar ninguém: todo erro é uma oportunidade para aprendizado - este é o pressuposto, o primeiro instante do conhecer: ignorar. Se um se encontrar sob a opressão de uma bigorna no peito; do mundo sobre as costas; a lâmina sob os pés; a espada sobre a cabeça, - ora, que se vire! Use as armas que tenha em mãos! Um psicólogo, que seja!

A psicóloga linda, ao menos, nutriu minha vista de beleza e de uma inteligência admirável, era um prazer caro estar com ela. Mas, não sei dizer até que ponto; em que medida ela contribuiu para a minha batalha. Talvez, me disciplinando a ter mais paciência com o tempo da minha verdade interior [Marca temporal: "Aeternum Phoenix"].

Pois, tive que debulhar muitos frutos podres que enlameavam a minha terra e fazer deles adubo; muitos cadáveres insepultos e outras moribundas figuras que me apareciam pelo caminho - e de tudo fazer corda para minha guitarra; das pedras no caminho, marcas da trilha e apoios de descanso. Tive que matar meu pai em mim: para tal, tive eu mesmo de ressuscitá-lo - aquela ave agourenta! Minha mãe, dela já havia me afastado com um golpe sangrento no ventre: cortei o cordão eu mesmo. Tive que nascer de novo - ir para além da minha origem naquilo que chamou a si mesmo um dia nobre: para além do bem e do mal, por intuição. Tive que matar o medo da Tragédia e admirar a sua beleza. Pois que é ela o meu caminho. Não peço a ninguém que siga meus passos e venha trilhá-lo, a ninguém além de mim é ele devido.

Tive que decifrar meus pesadelos, despi-los de seu terror e encará-los como sonhos - mensagens do meu eu-interior, o ser uno-primordial acenando através do meu sono: O tornado à minha frente que a tudo dragava, contra o qual eu tentava salvar a quem me era querido - a minha melhor amiga; as fantasmagóricas figuras de crânios em chamas, de quem eu dissimulava a admiração nos becos escuros, com vergonha. Tive que matar a vergonha que tive de mim mesmo. Tive de perdoar-me.

Hoje estou sóbrio e só. Não acredito em fantasmas desde a segunda infância; não vejo mais cadáveres putrefeitos pelos cantos de mim mesmo. Tudo foi arejado pelo tempo, que trouxe as bactérias necessárias à decomposição das folhas daquele outono. E posso florescer, ainda. Agora eu [re]conheço que tudo retorna eternamente em trajes e danças diferentes e eu amo o meu destino. Agora, estou, e me sinto, em casa.

 
A Minha Casa

A minha casa é qualquer lugar
Em que as paredes puderem testemunhar
A minha fortuna e a minha ruína
Em busca do elixir vou cumprir a minha sina.

O meu palácio onde posso ordenar
Que o silêncio altivo venha me adornar
O meu banquete pro meu paladar
São livros e discos que eu possa devorar

De tão são, até perdi a razão
De tão santo, até perdi o encanto
Tão veraz que cri uma vez mais
Na magia em que até a ciência acreditaria


O meu casulo de onde devir cigarra
Metamorfose que faz da guitarra asa
O meu cantar cresce em mim pra voar
E ao romper o escudo estou pronto pra tombar

A minha concha pérola esconde
Brilho lustroso por entre visco asqueroso
Se eu findar-me em vitrine disposto a ornamentar
Como vou lamentar entre os porcos chafurdar?

De tão são, até perdi a razão
De tão santo, até perdi o encanto
Tão veraz que cri uma vez mais
Na magia em que até a ciência acreditaria


O leito em que deito desafiado por sonhar
É de pedras que arrasto pelas curvas que escavo
Serei profundo ou apenas a água que turvo?
Quando vou decantar no abissal do mar?

De tão são, até perdi a razão
De tão santo, até perdi o encanto
Tão veraz que cri uma vez mais
Na magia em que até a ciência acreditaria

O lugar pra onde quero ir, o lugar que preciso
Se ele não existe, então, terei de criá-lo
O lugar que existe a partir do momento em que crio
É o lugar em que eu finalmente caibo.